Poeta de Gaveta

VIDA

(O BOCA DO INFERNO – num dia em que saber é mais enigmático que viver).

Alguém de razão, por razão, com razão me disse com suas palavras mesmo, que não entende o que escrevo. Que sorte a de alguém que eu jamais vi, eu também nunca entendi, só escrevi.

DELÍRIO

(O BOCA DO INFERNO – quando o delírio suplanta a dor).

Noutro dia, na sala de espera de um dentista, eu esperava, como esperam os que não têm muito o que esperar. Uma senhora, que esperava atropelando minutos, me disse, não sem dor, que esperava minha próxima crônica. Segundo sua boca de dentes cariados, escrevo bem. Fiquei feliz, afinal o da frente precisava fazer canal.

IRONIA

(O BOCA DO INFERNO – NO FIO DA NAVALHA)

Dia desses, o professor de literatura que ministrava ensinamentos que seus alunos apenas decoravam, estacou, torto, que nem obra de Picasso. O acidente vascular fez o carro bater no muro da sua existência. Parou. O professor máquina parou. O professor, travestido de debochador, provocador, chegou ao hospital a bordo do seu AVC triturador: cada um tem o seu, como a tosse ou a gastrite ou o coração. O cérebro virou gelatina. Sob pressão, aguou. O médico que medica o remédio que abaixa a pressão dos pressionados, afirmou em tom professoral, que ele tinha desvio de rima. Que ironia!

AI

Amador: ama a dor

Regador: rega a dor
Semeador: semeia a dor
Armador: arma a dor
Cultivador: cultiva a dor
Divulgador: divulga a dor
Relator: relata a dor
Vencedor: vence a dor
Complicador: complica a dor
Elevador: eleva a dor

A palavra na mente de um escritor incongruente

brinca somente com o significante ou o significado que às vezes mente.

(LUC)

NA PONTA DA LÍNGUA

Compenetro no obtuso mundo das palavras para louvar a língua.

Sem chave, vago e entretenho-me na poesia vaga.

Com várias vagas, o poema me abstrai.

Distraído, inquieto, mudo

Grito em silêncio os vapores vastos do charuto que não fumo.

Amoroso vassalo das palavras,

Conduzo meu cavalo de cetim por mares de certames.

A língua lambe meu silêncio, e grito insone:

A vida não é pequena!

Levo meu lema:

Navegar é preciso, Criar é imprescindível !

Entretemos vagas e palavras vãs…

Entrem, a chave está na ponta da língua.

 

Paul Degas / junho de 2017

Digestão

Noutro dia, a cólica me fez acordar de madrugada para me enfiar goela baixo mais uma pedra lembrança de tantas coisas pontiagudas, rascantes, quantas engoli para estar aqui. E o que significa estar aqui? Sei lá. Só sei que quero voltar para casa outra vez. Para voltar para ir embora de novo? Talvez.

A cidade é calor. Empoeirado calor. Empoleirado calor.

O calor da cama é cruel, queima. Bicho. Água viva. Está sob e sobre a pele. Bicho geográfico. Sede. Bicho.

Vivo agora estou, sei isso. Dói a noite que me empurrou mais uma daquelas escolhas, a que chamam idiotamente de destino. Deus deveria decidir por mim. Talvez eles estejam certos: Deus escolhe sorrateiro, matreiro, mas existe existindo, na cara contrita, nas mãos espalmadas das pessoas com o livro sacralizado debaixo do braço. Deus se esconde atrás desse mito, desse tal de destino. Ele é o “as” de ouros. Cortando o baralho tal qual navalha. Blefa. Bate. Bota crença na desrazão dos embotados. Bate. Não se compromete nas sombras. Blefa. Alugou-as para o diabo.

Crentes, suas criaturas são omissas. Submissas à sua chibata sequiosa. Precisa amamentar os fracassados, obrigá-los a assumir suas culpas, alimentar suas desculpas. Que culpa? A culpa é a desculpa. Culpa de ter culpa. Deus o abençoe – é assim que se trata os energúmenos.

Uma noite e mais um dia e mais uma noite e mais um dia, tantos quantos eu me dignar a suportar, a levantar para apontar o nariz para qualquer lado do meu universo descrente. Sinto, sinceramente, a tolice. Não convivo bem com a minha burrice. Sou medíocre demais para isso.

Tenho que rodar a maçaneta. Atirar-me porta a fora. Ouvir coisas sobre mim, como se ali não estivesse, e não estou. Engolir a cara dos muitos outros, servir-me de seu odor, do seu fedor, de suas opiniões. Jogar com suas máscaras, brincar suas fantasias de heróis, de princesas, de seres inalcançáveis na plenitude de suas verdades únicas. Vezes e vezes agir como um cego para suportar conviver, sair. Estar vivo é cumprir obrigações. Sair. Querem que eu saia. Sou um empecilho ao seu sossego.

Minha mente, meus sonhos, meus ideais, minhas distopias, minhas obrigações correm muito, muito mais que as minhas pernas descoordenadas, que mal sustentam meus pés tortos, caídos. Uma tropeça na outra. Vacilo de um lado para outro até que alguém me ampare e se desdobre em conselhos que tomaram para si, não praticam desde que os apartaram das fraudas. Minha cara sempre na mira do precipício. Desobediente ao medo, às vezes me rebelo, mas a “lei” da gravidade, sempre cruel, não abre precedentes, age tal qual um verdugo. Neste instante solene, com cara de idiota ensanguentado, cotovelos e joelhos ralados, estou voltando para casa outra vez. Para ficar para sempre? Talvez.

E Perséfone está ao alcance da palma da mão, das unhas, debaixo dos lençóis, o corpo sedento sua, a boca seca de um beijo de favor? Não, de amor. Hades, sempre ele, bafeja sua pestilência noturna: Acorda! Levanta-te. O pênis só abriga água morna, já se submeteu ao esgotamento das ilusões. Um rasgo de paixão não é suficiente para manchar um lençol. Quem sabe invocar Hefesto? Neste instante solene, estou voltando para casa de vez outra vez? Para entrar no papel para sempre? Talvez.

Levanto-me. Mau hálito, mau hábito. O dia de ontem, a noite de hoje, o dia de amanhã, o movimento das horas. Em um rasgo na escuridão, William Blake, encarcerado dentro da capa de couro, agoniza. William, digo, libertarei Tyger da página. Necessito das garras e trovões. A madrugada tem bafo, eu não tenho saudades. Preciso de garras de vez. Estou voltando para casa outra vez, pulando do papel para a sina? Talvez.

The Great Gig In The Sky. Claire Torry grita acordes profanos, ao invés cantar uma pregação. Meu grito é um caldo tórrido de emoções impertinentes em silêncio, sem religião. Sem coração? Minha oração não crê em milagres, crê em profanar religiões com legiões do Inferno de Dante na parede.

Com os dedos da mão direita, que não é a minha, liberto Blake. Tyger pula dos meus lábios secos. Claire liberta o seu grito, o meu rugido. Canto para dentro tal qual o mergulhador chupando ar engarrafado. Minhas garras batem ridículas nas linhas internas do poema em Blake.

Agora sim. Estou personagem sobre uma linha dentro de uma casca. Blake voltou para a estante, Claire para o vinil. Volto estrangeiro para casa outra vez. Para nunca? Talvez.

Deixo meu legado em linhas. Quem as reivindicará, quando eu morrer? Quem se magoará? Quem se regozijará? Quantos me amaldiçoarão? Quantos se verão? Quantos se acharão personagens, culpados, indiferentes? Quantos me perdoarão?

Vou sobreviver um tempo, amarelar um tempo, tirar o sossego por um tempo esmaecendo em um sebo, até o completo esquecimento. É assim que deve ser. Lavoisier nunca esteve tão certo, senão a memória morreria de indigestão.

Agora estou sentado numa linha, percorrerei Juiz de Fora. Agora me metamorfosearei em personagem de onde, entre gritos de Claire e garras de Blake, inferno de Dante. Encarcerado numa imaginação. Dessa, jamais fugirei. Finalmente estarei personagem do personagem de vez.

Há muito

Há muito a poesia não me possui

Cansou-se

Divorciamo-nos

Há calafrio em mim

Os lábios dela eram ferrolho

A saliva, água viva

A língua, sedutora

O beijo, ácido

Corroía à meia noite,

Refugava ao meio-dia

O sangue ferve

O peito dói como cólica de parto

Os olhos duros, a voz de cão danado

Cansei de lapisar

Cansei de dedilhar

Cansei de musicar

Não sei tocar

Divorciamo-nos

Não cala o frio em mim

E pronto

Como é estranho o olhar através de um anteparo

Um helicóptero pousa no prédio

Barulho de milhões de mariposas

Nada de poesia

Concreto

Só concreto

FRIO

Noutro dia.

Frio outono.

Uma mulher de rugas me disse que rugas de expressão, quando se assomam, se espremem no rosto

são marcas de pura felicidade

e eu sequer sinto frio.
(Luiz Cláudio Jubilato, às 22h num dia qualquer deste inverno)

Poeta amador

Com a fumaça de seu cigarro aceso,

Fita ao longe com desapego

Esboçando em guardanapo manchado de gim

A solidão que invade seu peito.

Tentando fazer de suas memórias poemas,

Sua verdade faz do resto mentira

E ele só deseja dizer da vida felicidade,

Mas como solitário trovador que é

A dor de um grande amor descreve desolado.

Triste poeta amargurado!

Que conheceu em certos dias,

A felicidade de ser amado

Deferiu mentiras, magoou e foi magoado

Ele é do mundo.

Um Mersault disfarçado!

Passeia pela vida, liberdade é seu prènom

Mas recorda com olhos marejados: « Liberdade é o ultimo recurso De quem não tem nada a perder »

Sina de quem descreve a dor que deveras sente Que possui em si a alma do desamor

Abre seu peito poeta!

E me ensina novamente a caminhar (sem os pés no chão).

 

Tassiana Frank

OS COMEDORES DE BATATAS

(LUIZ CLÁUDIO JUBILATO – 08/07/2016)

O velho Vincent era louco, disse o biógrafo louco para ter razão. Louca razão. Vincent nasceu velho. Escreve certo por linhas tortas ou escreve torto por linhas certas ou escreve torto com o torto. Suas razões, redige com pincéis. Seus pincéis traçam linhas bizarras. Suas canetas escancaram em traços grotescos a grosseira pocilga, onde pernoitam uns quase homens focinhentos, focinhos de ratazanas avançavam sobre batatas murchas. Murchas carnes. Muxibas. Mendigas criaturas. Criaturas famintas da criação. Olhos sanguíneos esbugalhados perscrutando as carnes e muxibas das caras uns dos outros. Famintos. Reconhecem-se na miséria da fome.

Os ratos amontoam-se na toca lúgubre de luz baça. Lúgubres não se tocam. São um ajuntamento de quase gente em andrajos. A loucura de Vincent escarra na cara do comensal observador sua natureza sórdida, distorcida, de nós, enojados, como se a cena contivesse baratas. Mas, baratas não têm focinhos, mas os focinhos devoraram baratas batatas. As cores de Vincent não falam, nem gritam, nem berram, escarram. As cores corrosivas se comem e se transpassam, pulsam e se expulsam, juntam-se e desajustam-se. O quadro, de janelas fechadas, é a escara da fechadura para o que não queremos ser.

Nosso futuro biógrafo terá suas razões para tentar obter a nossa falta de razão, quando frios, como mármore de carrara, nos vemos diante dos comedores de areia e bebedores de petróleo. Aqueles consumidos pela peste da fome. Aqueles que abandonam suas semicasas. Aqueles cujos corpos dão nas praias enrugados. A morte enruga. Aqueles que estão soltos pelo mundo em busca de porquês. Eles, os roedores comedores, estão ali, estão aqui; as batatas baratas também; as razões sem razão também, a loucura também, mas Vincent não, nem os porquês. Nem suas cores, nem seus traços que expõem as vísceras, as feridas da miséria humana que nos recusamos a entender. Mas, vamos falar de cor cinzenta amarronsada do quadro cena janela: O velho Vincent não precisa estar onde sempre esteve. Sua biografia é o seu tracejado violento, seres que saltam das telas.