Poeta de Gaveta

Digestão

Noutro dia, a cólica me fez acordar de madrugada para me enfiar goela baixo mais uma pedra lembrança de tantas coisas pontiagudas, rascantes, quantas engoli para estar aqui. E o que significa estar aqui? Sei lá. Só sei que quero voltar para casa outra vez. Para voltar para ir embora de novo? Talvez.

A cidade é calor. Empoeirado calor. Empoleirado calor.

O calor da cama é cruel, queima. Bicho. Água viva. Está sob e sobre a pele. Bicho geográfico. Sede. Bicho.

Vivo agora estou, sei isso. Dói a noite que me empurrou mais uma daquelas escolhas, a que chamam idiotamente de destino. Deus deveria decidir por mim. Talvez eles estejam certos: Deus escolhe sorrateiro, matreiro, mas existe existindo, na cara contrita, nas mãos espalmadas das pessoas com o livro sacralizado debaixo do braço. Deus se esconde atrás desse mito, desse tal de destino. Ele é o “as” de ouros. Cortando o baralho tal qual navalha. Blefa. Bate. Bota crença na desrazão dos embotados. Bate. Não se compromete nas sombras. Blefa. Alugou-as para o diabo.

Crentes, suas criaturas são omissas. Submissas à sua chibata sequiosa. Precisa amamentar os fracassados, obrigá-los a assumir suas culpas, alimentar suas desculpas. Que culpa? A culpa é a desculpa. Culpa de ter culpa. Deus o abençoe – é assim que se trata os energúmenos.

Uma noite e mais um dia e mais uma noite e mais um dia, tantos quantos eu me dignar a suportar, a levantar para apontar o nariz para qualquer lado do meu universo descrente. Sinto, sinceramente, a tolice. Não convivo bem com a minha burrice. Sou medíocre demais para isso.

Tenho que rodar a maçaneta. Atirar-me porta a fora. Ouvir coisas sobre mim, como se ali não estivesse, e não estou. Engolir a cara dos muitos outros, servir-me de seu odor, do seu fedor, de suas opiniões. Jogar com suas máscaras, brincar suas fantasias de heróis, de princesas, de seres inalcançáveis na plenitude de suas verdades únicas. Vezes e vezes agir como um cego para suportar conviver, sair. Estar vivo é cumprir obrigações. Sair. Querem que eu saia. Sou um empecilho ao seu sossego.

Minha mente, meus sonhos, meus ideais, minhas distopias, minhas obrigações correm muito, muito mais que as minhas pernas descoordenadas, que mal sustentam meus pés tortos, caídos. Uma tropeça na outra. Vacilo de um lado para outro até que alguém me ampare e se desdobre em conselhos que tomaram para si, não praticam desde que os apartaram das fraudas. Minha cara sempre na mira do precipício. Desobediente ao medo, às vezes me rebelo, mas a “lei” da gravidade, sempre cruel, não abre precedentes, age tal qual um verdugo. Neste instante solene, com cara de idiota ensanguentado, cotovelos e joelhos ralados, estou voltando para casa outra vez. Para ficar para sempre? Talvez.

E Perséfone está ao alcance da palma da mão, das unhas, debaixo dos lençóis, o corpo sedento sua, a boca seca de um beijo de favor? Não, de amor. Hades, sempre ele, bafeja sua pestilência noturna: Acorda! Levanta-te. O pênis só abriga água morna, já se submeteu ao esgotamento das ilusões. Um rasgo de paixão não é suficiente para manchar um lençol. Quem sabe invocar Hefesto? Neste instante solene, estou voltando para casa de vez outra vez? Para entrar no papel para sempre? Talvez.

Levanto-me. Mau hálito, mau hábito. O dia de ontem, a noite de hoje, o dia de amanhã, o movimento das horas. Em um rasgo na escuridão, William Blake, encarcerado dentro da capa de couro, agoniza. William, digo, libertarei Tyger da página. Necessito das garras e trovões. A madrugada tem bafo, eu não tenho saudades. Preciso de garras de vez. Estou voltando para casa outra vez, pulando do papel para a sina? Talvez.

The Great Gig In The Sky. Claire Torry grita acordes profanos, ao invés cantar uma pregação. Meu grito é um caldo tórrido de emoções impertinentes em silêncio, sem religião. Sem coração? Minha oração não crê em milagres, crê em profanar religiões com legiões do Inferno de Dante na parede.

Com os dedos da mão direita, que não é a minha, liberto Blake. Tyger pula dos meus lábios secos. Claire liberta o seu grito, o meu rugido. Canto para dentro tal qual o mergulhador chupando ar engarrafado. Minhas garras batem ridículas nas linhas internas do poema em Blake.

Agora sim. Estou personagem sobre uma linha dentro de uma casca. Blake voltou para a estante, Claire para o vinil. Volto estrangeiro para casa outra vez. Para nunca? Talvez.

Deixo meu legado em linhas. Quem as reivindicará, quando eu morrer? Quem se magoará? Quem se regozijará? Quantos me amaldiçoarão? Quantos se verão? Quantos se acharão personagens, culpados, indiferentes? Quantos me perdoarão?

Vou sobreviver um tempo, amarelar um tempo, tirar o sossego por um tempo esmaecendo em um sebo, até o completo esquecimento. É assim que deve ser. Lavoisier nunca esteve tão certo, senão a memória morreria de indigestão.

Agora estou sentado numa linha, percorrerei Juiz de Fora. Agora me metamorfosearei em personagem de onde, entre gritos de Claire e garras de Blake, inferno de Dante. Encarcerado numa imaginação. Dessa, jamais fugirei. Finalmente estarei personagem do personagem de vez.