DAS FÚRIAS DO PENSAMENTO

Escrever é pungente e pulsante; mais que isso: é urgente. Urgente é pensar e pensar está difícil, bem difícil. Pensamento é razão que se debruça sobre o caos para moldá-lo; como, porém, transformar o que, de antemão, não se presta à mudança? Volto ao ponto inicial: escrever para pensar. Ideia solta é cria perdida, sem pai nem mãe: mais que apenas escrever é preciso escrever para juntar, concatenar, organizar. Escrever para não parar de pensar. Paro por aqui. A espiral de reflexões iria longe e por enquanto a intenção não é assustar, apenas provocar.

As mesmas Fúrias que trucidam Orestes na mitologia grega costumam me perturbar. Elas, em seu ímpeto infernal, tiram-me o sono com seu sopro inspirador: Camões invocou as ninfas Tágides; eu, coitado, sou acometido pelas Erínias desses tempos malucos e pós-modernos. Ao menor descuido, um fato novo, um “causo”, um absurdo, uma polêmica entram-me na mente e lá/aqui ficam a pipocar e querer ganhar corpo, forma, virar parágrafo e concatenar-se com outras ideias. Tento ignorá-las, às vezes, mas o zumbido não para e não consigo conciliar o sono. No meio da noite, levanto-me e despenco a escrever. Depois de anos fazendo isso, penso mesmo que nasci para tanto: vou tecendo minha existência por meio de lavor ingrato que transformar a balbúrdia do pensamento e letra deitada na página, acomodada no leito da sentença. E se o faço com constância, por que não levar adiante, como um sacerdócio, esse ofício com ares de artesania?

Já escrevi várias vezes que verter em palavra o que fica se debatendo na cabeça é como exorcizar demônios. A maturidade vem me trazendo mais firme essa convicção. Via análoga, vem a percepção de que há muitos diabos mal exorcizados, almas penadas e se alojam em outras almas, essas apenadas, num verdadeiro coral de som e fúria. Na linha do sacerdócio potencial, ensino a escrita, a redação se assim preferem chamá-la, por crer que a única e verdadeira libertação é aquela que nos despoja da ignorância, e para purgar esse mal o único instrumento confiável é pensar. O que nos leva, uma vez mais ao início.

Este blog é parte do processo que empreendo, da cruzada que travo, da vida que levo. Escrever e ensinar são, para mim, atividades inseparáveis. Se o que lerem nestas páginas virtuais for inspirador ou provocador, cumpri metade da tarefa. Se a inspiração ou a provocação se converterem em mais linhas costurando parágrafos, seremos, então, como os galos de João Cabral de Melo Neto que tecem a manhã. Nós teceremos não “a manhã”, mas “o amanhã”: perspectiva de um admirável mundo novo em que o narcótico seja o senso crítico, eterno vigilante naquela cerca franzina que nos impede de voltar a ser gado no rebanho dos que, por preguiça ou medo, preferem não pensar.

 quarta-feira, 05 de novembro de 2014