AUTOFOBIAS E NARCISISMOS EQUIVOCADOS
Meu trabalho como professor me põe em contato com muitas pessoas, em muitos lugares, o que acaba me levando à posição de observador privilegiado de comportamentos e emoções alheios. Do muito que eu poderia compartilhar sobre isso, um ponto vem a calhar com o dia de hoje e com a avalanche de textos sobre mulheres e suas contradições (algumas que, devo confessar, não entendo): a relação com a própria imagem e a necessidade de pertencer ao grupo (seja ele qual for) e estabelecer identidades a partir da aparência.
Por um lado, entendo a lógica por trás desse mecanismo emocional, até por ter feito parte disso. Numa breve digressão confessional, quando eu era adolescente, até o meio dos anos na faculdade, fui bem gordo. Para alguém com menos de vinte anos, isso pode ser um pesadelo e, hoje, a questão é mote para infindáveis discussões que vão de bullying a dismorfia corporal. Não fui exceção e, por isso mesmo, ao longo de dois anos, com supervisão médica e paciência, perdi 50 quilos. O fim do processo coincidiu com mudanças importantes em minha vida e ter boa aparência tornou-se uma espécie estatuto que me inseriu em espaços onde, antes, não podia estar. Cultivei isso por muito tempo, até perceber que só valia a pena pela parte do ser saudável, e que sacrifícios como não tomar cerveja com amigos ou levar uma marmita com salada e frango na feijoada do Dia das Mães era ridículo. Hoje, na idade do lobo, deixei para trás a busca por resultados supérfluos e curto a acabemia como uma forma de terapia, sem medir ninguém e pouco me importar com quem, eventualmente, me meça.
Divido isso como “leitmotiv” para uma reflexão sobre as fobias que tenho notado em pessoas já não tão jovens (além das muito jovens, claro), que deixam de viver o agora em busca de uma construção tantálica do eu inatingível. Observo como é imperativo afirmar-se por meio do registro, como prova material, do “eu estou fazendo tudo para ser um semi-deus, e você?”; observo ainda como muitos amigos e conhecidos se privam da vida por acharem que não fazem parte do clube do tanquinho, da bunda dura, do bíceps 42 centímetros e por aí vai. E se homens, historicamente menos cobrados quanto a isso, estão sofrendo, imagino as mulheres que ainda não apertaram o botão do foda-se para tais cobranças.
Não vou me alongar nas considerações, nem vou citar Bauman para provar minhas teses pessoais: deixo isso para meus leitores, como desafio. Mas alerto que a questão aqui colocada dialoga abertamente com condutas que estão na pauta da hora. O incidente com o estudante da UNESP de Bauru, morto após ingerir doses extra-dionisíacas de vodka (se é que era vodka mesmo), também estão ligadas a esse assunto: criar identidade a partir de um traço de caráter específico. No caso do rapaz, avento a hipótese de que, desde o início da faculdade, ele tenha se definido como “o cara que toma todas”, do mesmo modo que há “o cara que pega todas”, “o cara que tem pai rico”, “o cara mais bonito” e por aí segue a lista.
Proponho a reflexão, pois creio que é apenas a partir dela que o indivíduo se torna um sujeito social consciente de si e livre da necessidade desse crachá invisível que, como tentei demonstrar, pode ser doloroso ou, em última análise, letal. Abraço e boa semana para todos, todas e todXs!
COMENTÁRIOS GERAIS SOBRE A PROVA DE LINGUAGENS E CODIGOS DO ENEM
Bem, antes de mais nada: foi uma prova fácil, salvo algumas questões que exigiam mais reflexão. Creio que ficou evidente como o ENEM valorizou assuntos considerados “novos” nos estudos de Língua Portuguesa no Ensino Médio, como VARIANTES LINGUÍSTICAS: foram SEIS questões no total, o que equivale a 15% da prova! Também tivemos três questões que envolviam gêneros textuais (o que serve de prova para os alunos que ignoram a importância dessas aulas), questões sobre a relação entre o texto verbal e o visual, sobre funções da linguagem (duas) e interpretação de texto – focadas em assuntos tradicionais do ENEM, tais como tecnologias da comunicação e música atual.
Em literatura observamos uma quebra do paradigma “mais contemporaneidade” e apareceram autores há muito esquecidos pelo ENEM, como Gregório de Matos e Augusto dos Anjos. Também caíram Manuel Bandeira e Machado de Assis (este último numa questão que reproduziu o intuito de análise literária do ano passado).
Foi, enfim, uma prova muito bem feita e creio que todos os alunos que se dedicaram à leitura atenta tenham ido bem.
Opinar dói, mas sói
Comentei, recentemente, em sala como me provoca o sentido das palavras, o fato de simplesmente significarem e o percurso desse significar. Propus tal reflexão acerca do vocábulo “vestibular”, que vem de “vestíbulo”, palavra que designa antessala – ou como arrepiaria os cabelos mais íntimos de Aldo Rebelo, “hall” – e é usado como qualificador de exame, ou seja, exame que antecede o ingresso, nesse caso, à universidade. Ponderando, depois, sobre o ocorrido, pensei em outra: “papagaiada”, termo de origem popular que, segundo o velho e já não tão bom Aurélio (hoje sob a tutela da editora Positivo, mas era o que estava à mão), tem origem popular e indica ação ou exposição ridícula. Ri comigo mesmo, tanto pela palavra, quanto pelo fato de, curiosamente, ser um asmático que não é alérgico a gatos, mas a papagaios. É verdade, sou alérgico a papagaios. Coisas da vida.
A comédia das casualidades me fez constatar, ou voltar a constatar, que sou também alérgico a papagaiadas – o que me parece deveras lógico. E sinto, a cada dois anos, os incômodos sintomas que o palavrório e a retórica de botequim trazidos pelas eleições me causam. Aberrações jurídicas, absurdos procedimentais, mau uso da imprensa, da máquina pública, de nossa paciência e dignidade, enfim, pululam e são tratadas nas rodas de conversa, nos debates e, principalmente, nas redes sociais como algo sério. E é sério, porém de modo diverso daquele que parece ser o rumo que as conversas tomam.
A coerência pessoal e o senso de ridículo me impediriam de tentar sustentar qualquer postura que, minimamente, sugerisse neutralidade: não sou apolítico, nem creio que haja cidadão (entendido esse indivíduo como aquele que dispõe e alguma informação básica para compreender os meandros da política em qualquer nível) apolítico. Tenho minhas convicções, sim, mas elas não interferem no que pretendo expor.
Tenho ouvido e lido muita papagaiada, na televisão, no espaço público (na ágora, como meu já íntimo Bauman insiste), nas conversas informais, aqui na rede social. De um lado, dos pretensos ascetas “dilmaclastras” (gosto de brincar com as palavras, uai); de outro, dos irritadíssimos petistas que, tal neuróticos com síndrome do pânico, arregalam seus já esbugalhados olhos para proferir palavrórios em defesa de acusações que, às vezes, ainda não foram feitas.
Peço ao leitor que, por caridoso favor, não pense que estou aqui a alfinetar “amigos de face” que já postaram suas opiniões. Parafraseando a Adriana Calcanhoto, eu respeito qualquer opinião: o que eu não gosto (sic) é dos bons modos daqueles que deliberadamente desdobram meias verdades em verdades e meia com o propósito de parecerem críticos ou antenados. Apesar de ser um homem das humanidades, aprecio o pensamento lógico e a irracionalidade disfarçada de razão (quase) consegue me tirar do sério.
Cada semana há o escândalo da vez, a polêmica acalorada do momento, o frenesi alimentar daqueles que têm sede de sangue e acham Datena o epítome de tudo que o jornalismo deve ser. Agora a bola da vez é o já desgastado “caso da refinaria de Pasadena” (acho engraçado o fato de cada jornalista pronunciar o termo em língua inglesa de um modo, com o um tom de afetação que me parece ser o termômetro exato da afetação de seu senso crítico). É assunto polêmico, fato; é dinheiro público que pode ter sido mal usado, fato; há uma crise financeira na Petrobrás, fato. Fatos e mais fatos. Mas a já referida papagaiada não fica apenas nos fatos.
A retórica ensaboada dos alarmistas de plantão me irrita, não apenas por ser mal intencionada, mas, principalmente, por desafiar minha inteligência de leitor e cidadão. Pois bem, se como eu disse há fatos, é aos fatos que se deve recorrer: não a um, mas a todos. E como? Nas fontes que nos pareçam mais confiáveis, não?
Já baleei outros papagaios antes, dentre eles os daquela espécie que certos supostos formadores de opinião criam em gaiolas de marxismo simplificado e soltam em meio a jovens encantados com o esquerdismo a la “the walking dead”. Um desses bichinhos insidiosos repetia por aí que a VEJA não deve ser lida por ser tendenciosa; que a Folha de São Paulo é um jornal “comprado”, e por aí vai. Ora, caro leitor, crê você que haja uma única sentença em nosso universo de linguagem que não seja tendenciosa? Eu poderia trazer a esta mesa improvisada de debates a opinião de Bakhtin ou qualquer outro filósofo da linguagem, mas vou me valer de minha própria autoridade: aceite o que eu digo, tudo que já foi ou ainda será enunciado é tendencioso, da Bíblia aos roteiros de filme pornô.
E sabendo disso, quem é crítico e pode, portanto, construir opiniões próprias, simplesmente aprende a separar a informação, os fatos, e deixar a avaliação por conta própria. Desse modo, se voltarmos à famigerada aquisição da refinaria em Pasadena, logo percebemos lacunas, que bem poderiam sem chamadas de abismos, na parlapatice dos que acusam Dilma Rousseff (que, reiterando a advertência de que minha opinião política é irrelevante, não é nenhuma santa, como alguns colegas petistas tentam pintar) de improbidade. Eles se baseiam no fato de que a refinaria foi comprada, por 360 milhões de dólares, de uma empresa que a havia comprado antes por 42 milhões. Foi o que eu li aqui, em vários posts. Nas variadas revistas semanais há algumas informações adicionais; nos jornais já pontuam dados extras, porém de modo vago. Curiosamente, na fonte que por princípio ético e por maior acessibilidade aos fatos que constam nas investigações é que me deparo as piores distorções: nas falas proferidas na Câmara dos Deputados e no Senado (preciso confessar que ouço “A voz do Brasil”). Ok, talvez seja ingenuidade minha crer que os representantes do povo devam ser éticos, mas entendam que é preciso partir de algum princípio, de alguma ordem que organize o caos.
Por ali, circulam, abobalhados, deputados, senadores, seus respectivos e numerosíssimos assessores, procuradores e séquito equivalentes, representantes com crachás das mais variadas cores, mas ninguém parece perguntar o essencial: uma empresa adquire uma refinaria e não faz nenhum investimento no bem adquirido? Se não, há aqui algo muito equivocado na gestão empresarial de tal empresa; se sim, onde estão os dados de tais investimentos? Sim, pois isso faria o valor da refinaria aumentar. Refinarias – e meus leitores engenheiros corrijam-me se estiver errado – mantêm silos de armazenamento do combustível produzido. Considerando que a aquisição se deu em um momento no qual o valor dos combustíveis batia sucessivos recordes (palavra paroxítona, por favor), imagino cá com meus botões que o montante estocado na data da compra tivesse valor significativo. Pois bem: havia combustível estocado? Se sim, ele foi comprado pela Petrobrás no negócio da aquisição? Se foi comprado, quanto era e por quanto foi comprado? O valor confere com os preços praticados à época? Ora, todos esses fatos que ainda não pude ler aqui, nem ouvir nos debates, muito menos na fala de parlamentares, podem explicar muito ou, então, posicionar melhor as interrogações acusatórias.
O que sei e posso já adiantar é que acusar Dilma diretamente é, tecnicamente, um equívoco. A decisão da compra veio de um um órgão colegiado que funciona como conselho deliberativo e, no caso da Petrobrás naquela época, envolvia empresários que não tomariam decisões atrapalhadas, seja pela experiência que já haviam demonstrado na gestão privada, seja porque tal passo em falso arruinaria suas imagens como administradores – e, creiam, estou falando de gente que não liga a mínima para quem é presidente do Brasil ou quais interesses políticos estejam em jogo por aqui. Trocando em miúdos, a compra foi uma decisão de um grupo de pessoas altamente qualificadas e que representavam interesses bem maiores que os do atual governo ou mesmo do então governo de Lula. Além do mais, adquirir uma refinaria não é como comprar um terreno ou carro (“deu a louca vai lá e compra”): é um processo ponderado, antecedido por avaliações de risco de mercado feitas por consultorias diferentes e cujos pareceres documentados ficam arquivados. Esses dados existem, mas onde estão? Por que ainda não foram divulgados?
Há não apenas uma, mas até onde sei quatro investigações em curso. Estes documentos estão sob custódia da lei? Se sim, parece-me muito mais proveitoso que os autores de papagaiadas usem seu fôlego e retórica para reivindicarem tais fatos que podem comprovar suas acusações ou esclarecer seus anseios de cidadãos preocupados com o bom uso do dinheiro público (eu e minha ingenuidade de novo), não vejo outra conduta a ser seguida. O silêncio ou a insistência no uso de dados vazios indicará a intenção deliberada de emitir opiniões deturpadas ou, no pior dos casos, a inépcia para o exercício da cidadania. Espero que a verdade venha à tona, que os brasileiros recebam os devidos esclarecimentos, que as eleições tenham como resultado o melhor para nosso país – estou sendo realmente sincero – mas, espero, acima de tudo, que os que desejam emitir suas opiniões não ofendam tão descaradamente quem ainda ousa pensar um pouco que seja.