Mais rápido, mais rápido, mais rápido
Por Alexandre Rodrigues | Para o Valor, de São Paulo
Primeiro quase não havia o tempo. Ainda que o avanço do dia pudesse ser medido pelos relógios de sol e da noite pelos de água (parecidos com esses que ainda enfeitam shopping centers), os horários mais confiáveis ainda eram a alvorada, o sol a pino e o anoitecer. Por milênios, para as civilizações, medir o tempo – exceto os responsáveis pelos sinos das igrejas que anunciavam as missas – nunca foi propriamente uma obsessão. Então, em algum ponto entre os séculos XVIII e XIX, a história mudou. Máquinas e fábricas e, mais tarde, trens e cabos telegráficos lançaram o mundo em um ritmo de vida com relógios, horários e pressa, muita pressa – a revolução industrial.
Dois séculos depois, a humanidade vive uma doença do tempo, afirma o sociólogo alemão Hartmut Rosa, em “Beschleunigung und Entfremdung” (aceleração e alienação), ensaio ainda não publicado no Brasil. Fazendo eco a uma reclamação generalizada, ele aponta que o excesso de atividades anulou os ganhos que a tecnologia trouxe ao tempo das pessoas. O resultado é uma epidemia mundial de estresse, ansiedade e insônia.
“Vivemos para realizar tantas opções quanto possível da paleta infinita de possibilidades que a vida nos apresenta”, diz. Viver intensamente a vida se tornou o principal objetivo do nosso tempo. “No fim do dia, nunca fizemos todas as coisas que deveríamos ter feito. Não trabalhamos o suficiente, não nos importamos o suficiente com as nossas crianças e pais, não estamos em dia com as notícias. O número de dimensões em que é suposto ‘otimizar’ a nossa vida, literalmente, explodiu nos últimos anos e não importa o quão rápidos e eficientes somos, nunca é o suficiente.”
Rosa, autor de outros trabalhos sobre a velocidade na vida moderna e professor da Universidade de Jena, na Alemanha, aponta que nosso atual ritmo de vida é fruto de três tipos de aceleração: mecânica, da mudança social e do passo da vida. Iniciada com a revolução industrial, a aceleração mecânica modificou as comunicações, a produção e os transportes. Como consequência, provocou mudanças nas sociedades que alteraram o ritmo da vida. Resultado: mais aceleração.
Rosa, para quem a humanidade vive uma doença do tempo: “Não importa o quão rápidos e eficientes somos, nunca é o suficiente”
Se de Júlio César a Napoleão a velocidade máxima para alguém ir de um ponto ao outro continuou a mesma – a de um cavalo -, os motores, primeiro nos trens e navios no século XIX, depois nos aviões e automóveis cem anos depois, encurtaram distâncias e aproximaram o mundo. O mesmo ocorreu nas comunicações a partir da invenção do telégrafo. As fábricas adotaram os horários para organizar a produção e a humanidade ganhou uma companhia: os relógios. Os operários agora precisavam morar perto do trabalho e isso os agrupou nas cidades, criando as metrópoles modernas.
Vistas na época, essas mudanças traziam a promessa de que seres humanos finalmente seriam capazes de moldar sua vida em comum e criar sociedades que os pensadores clássicos e da Renascença tinham imaginado. O resultado deveria ser uma era de razão em que a felicidade, a prosperidade e a liberdade deveriam ser para todos. No entanto, desde o início, quanto mais a tecnologia economizava tempo, mais ocupados todos se tornaram.
“A lógica da competição militar e dos Estados teve um papel nisso, e a ideia de que podemos ter algo parecido com uma ‘vida eterna antes da morte’ se a gente for rápido o bastante para fazer um número indefinido de coisas antes de morrer, também”, explica Rosa. Mas o papel mais importante é do capitalismo. “Para crescer, economias capitalistas precisam acelerar e inovar incessantemente. Se param de crescer e acelerar, perdem empregos, empresas fecham as portas, as receitas do Estado entram em declínio e, como consequência, o sistema político perde legitimidade.”
Esse processo, que já seguia em ritmo forte desde a revolução industrial, adquiriu uma velocidade alucinante a partir dos anos 1970, com a revolução dos computadores. Cada nova tecnologia passou a ser anulada pela produtividade. E com a globalização não só trabalhadores, mas também países, entraram em competição. “Como o trabalho cada vez mais especializado aumenta a produção, aumenta a quantidade de produtos e serviços que precisam ser consumidos”, diz a dupla de sociólogos americanos John P. Robinson e Geoffrey Godbey. O resultado é um impulso para o consumo constante, seja de produtos, serviços ou viagens.
Em resposta, a própria percepção do tempo começou a mudar. James Tien e James Burnes, professores de matemática aplicada do Instituto Politécnico Rensselaer, nos Estados Unidos, analisaram o crescimento das estatísticas de produtividade e emissão de patentes em 1897 e 1997 para concluir que a percepção da passagem do tempo para um jovem de 22 anos é 8% mais rápida do que para alguém da mesma idade um século atrás. Para alguém com 62 anos, a vida hoje se passa 7,69 vezes mais rápida. A aceleração, dizem outros estudos, continua aumentando essa sensação.
Petrini, criador do “slow-food”
As consequências são conhecidas de médicos desde quase o surgimento das máquinas. No fim do século XIX, denunciava-se uma epidemia de neurastenia, causada pelo ritmo de vida nas cidades. Com o avanço dos estudos, Larry Dossey, médico americano, criou, nos anos 80, a expressão “doença do tempo” para descrever a crença obsessiva de que o tempo está passando e a única solução é acelerar o ritmo de vida. Dois psicólogos cardíacos americanos, Diane Ulmer e Leonhard Schwartzburd, da Universidade de Berkeley, concluíram em um estudo, “Coração e Mente”, que a pressa extrema e constante pode afetar a personalidade e as relações sociais, levando também a estresse, insônia, problemas cardíacos e de concentração.
A sensação de pressa também cria um estado de busca de ganhos imediatos, mesmo se há chance de uma recompensa maior no futuro, e reduz a propensão para fazer economia. “Descobrimos que até mesmo a exposição a símbolos de fast-food pode aumentar automaticamente a pressa, mesmo sem a pressão do tempo”, diz Chen-Bo Zhong, psicólogo canadense da Universidade de Toronto que conduziu, com Sanford E. DeVoe, o estudo “Fast-Food e Impaciência”. No Japão, onde a pressa se junta à pressão social, colapsos são tão comuns que há no vocabulário uma palavra, “karoshi”, para os casos de trabalhadores que morrem com sobrecarga de trabalho.
Economistas se deram conta do fenômeno depois que o sueco Staffan Linder (1931-2000), publicou, nos anos 70, “A Classe Ociosa Atormentada”, prevendo que os trabalhadores se tornariam atarefados demais para o lazer. Décadas depois, não só as previsões se confirmaram – segundo a socióloga americana Juliet Schor, 37% do tempo de lazer foi perdido nas nações industrializadas desde meados dos anos 70 – como a aceleração tecnológica mudou drasticamente a economia.
“Tem sempre um mercado aberto. Tem que estar sempre ligado no celular ou Skype”, comenta Gabriel Franke, operador de mesa da corretora XP Investimentos. Com o “home broker” e as bolsas eletrônicas, cotações mudam segundo após segundo, afetando todos, e as negociações nos mercados podem seguir em qualquer hora ou lugar. “Às vezes tem cliente que está posicionado numa operação que tem influência de mercado lá fora e aí fico de olho mesmo. E alguns mercados, como o de moedas, nunca fecham.” Tempo para o lazer? “Acabo tendo algum no domingo.”
A percepção da passagem do tempo para um jovem de 22 anos é 8% mais rápida do que para alguém da mesma idade um século atrás
Os efeitos são ainda mais sentidos no mundo digital. Segundo Eric Schmidt, CEO do Google, o volume de informação produzida entre o início das civilizações e 2003 hoje é criado a cada dois dias. A capacidade de processamento dos computadores, seguindo a chamada Lei de (ex-presidente da Intel Gordon) Moore, continua a dobrar a cada 18 meses. Mas também há aceleração drástica no crescimento da população (o número de pessoas nascidas desde 1950 é o mesmo dos primeiros quatro milhões de anos da humanidade) e até no número de doenças descobertas (28 novas infecciosas desde os anos 70, de acordo com a Organização Mundial de Saúde).
A aceleração, porém, não é a mesma para todos. Em um estudo chamado “A Geografia do Tempo”, o psicólogo social americano Robert Levine, da Universidade da Califórnia, pesquisou a maneira como os habitantes de 31 cidades pelo mundo vivenciam o tempo. Em um exercício curioso, os pesquisadores mediram a velocidade das pessoas para percorrer um trecho de 18 metros. Os japoneses caminham mais apressados. Os brasileiros – ele viveu por um ano no país e se sentiu torturado pela falta de pontualidade local – ficaram com o 28º lugar. Em um trabalho parecido, pesquisadores da Universidade de Hertfordshire, na Inglaterra, concluíram que a cada dez anos as pessoas faziam o mesmo trecho um segundo mais rápido.
“Embora eu não tenha dados empíricos, acredito que o ritmo acelerou no país, mas seletivamente”, observa Levine. “À medida que a agitação atual demonstra, o crescimento econômico permanece limitado a certas pessoas e lugares e, na maioria das vezes, o mesmo pode ser dito sobre o ritmo resultante da vida.”
Pesquisadores mediram a velocidade das pessoas para percorrer um trecho de 18 metros em 31 cidades. Os japoneses são os que caminham com mais pressa
Empregos, relacionamentos, amizades, até laços familiares, nada mais é para sempre. Um aspecto positivo é que as sociedades se tornaram mais heterogêneas, com o reconhecimento das minorias, direitos das mulheres, estilos de vida alternativos e novas formas de relacionamento. Quanto mais a tecnologia se acelera, mais rapidamente os países, os ocidentais, por enquanto, se tornam mais plurais. Hoje, 585 milhões de pessoas vivem em países onde o casamento gay é legalizado. Doze anos atrás, esse número era zero. Em junho, a Suprema Corte dos Estados Unidos retirou algumas proteções aos negros americanos, considerando que não são mais necessárias.
O lado negativo é o que levou Rosa a escrever o ensaio, um processo que ele chama de “alienação”. O termo, tomado emprestado de Karl Marx, é o resultado final das mudanças sociais, quando o próprio ritmo da vida é alterado, exigindo novas tecnologias, que vão criar mais mudanças sociais e mais alterações do ritmo da vida, como em um círculo que se retroalimenta. “Alienação envolve um estado em que as pessoas já não se sentem em casa no seu mundo porque têm que mudar de lugar, trabalhos, ferramentas, rotinas, amigos e, talvez, até mesmo famílias o tempo todo”, aponta Rosa.
Esse fenômeno estaria por trás de alguns conflitos sociais da atualidade. Parte das pessoas, segundo ele, não consegue dar conta das complexidades do mundo atual e busca refúgio no conservadorismo. Se não se tornam dogmáticas, radicalizando posições como no conflito permanente entre democratas e republicanos nos Estados Unidos, propõem, como ocorre atualmente na Alemanha, o abandono das discussões em nome da rápida adaptação às mudanças.
Má notícia para os políticos. Como a sociedade se move a um ritmo cada vez mais alucinante, há um abismo entre a política e as pessoas. “Essa fenda é a consequência de uma falta de sincronia entre o ritmo da política, de um lado, e a velocidade da mudança social no outro. A política tornou-se lenta demais”, reflete o sociólogo alemão. “Em muitos casos, a política não é mais o marca-passo das tendências de mudança social, só está preocupada em apagar incêndios.”
Segundo CEO do Google, o volume de informação produzida entre o início das civilizações e 2003 é criado, hoje, a cada dois dias
Trata-se de uma ameaça às democracias. Os políticos, afirma, estão deixando de ser relevantes, abrindo espaço ao surgimento de líderes populistas. Os argumentos saem de cena em troca de ressentimentos e instintos irracionais. Seria uma das razões que atualmente levam multidões às ruas em todo o mundo. “O nosso sistema é muito burocratizado e com várias normas que no fim das contas afastam as pessoas”, faz coro o professor Rafael Alcadipani, coordenador de pesquisas organizacionais da Fundação Getúlio Vargas (FGV-SP), que tem estudado os protestos recentes no país. “A política precisa dar respostas e isso não tem acontecido.”
Seja com os artistas e escritores do romantismo, transcendentalistas ou os do Arts & Crafts, movimentos pela desaceleração acompanham a própria história da aceleração. Sua versão moderna desde os anos 90 prega a opção pela lentidão. O pioneiro, o movimento “slow-food” (comida lenta), foi fundado pelo italiano Carlo Petrini em 1986 em reação à presença de uma filial do McDonald’s no centro histórico de Roma e reage ao fast-food. Inspirados nos viajantes-escritores do século XIX, os praticantes do “slow-travel” (viagem lenta) advogam o envolvimento dos turistas com os locais visitados. Artistas do “slow-art” (arte lenta) produzem – e também defendem que seja assim a apreciação das obras – com todo o tempo do mundo.
Há ainda a “slow-fashion” (rejeita as roupas produzidas em massa, preferindo as costuradas à mão), o “slow-data” (chega de produzir tanta informação) e o “slow-stocks” (prega recompensas do mercado aos acionistas que mantiverem suas ações por mais tempo). Cada um leva a seu campo a luta contra o relógio. E, como tudo começou com a tecnologia, por que não reduzir o ritmo da ciência?
Marlene Bergamo/Folhapress / Marlene Bergamo/FolhapressManifestação em junho, em São Paulo: como a sociedade se move a um ritmo cada vez mais alucinante, há um abismo entre a política e as pessoas, observa sociólogo
“Precisamos ter tempo para pensar muito cuidadosamente sobre cada avanço científico – a fim de descobrir a melhor maneira de usá-lo no mundo real”, afirma Carl Honoré, escocês radicado no Canadá, autor do best-seller “Devagar”. Em 1990, ele esperava um voo no aeroporto de Roma, quando leu um texto chamado “A História de Dormir de um Minuto”, em que autores condensavam clássicos das histórias infantis para pais sem tempo. Foi o ponto de partida para se tornar um militante da desaceleração. “Eu não acho que devemos reduzir a ciência. Pelo contrário. Eu acho que precisamos usar a ciência de forma mais sensata. E a sabedoria e a lentidão andam de mãos dadas.”
Outra iniciativa: na Inglaterra e nos Estados Unidos, foi criado o “Banco do Tempo”, onde pessoas trocam serviços, como pequenos consertos e cuidar de crianças e idosos, por um certo número de horas que dá direito a contratar outras pessoas para as próprias necessidades. A solução lembra a premissa do filme “O Preço do Amanhã”, do diretor neozelandês Andrew Niccol, no qual cada humano precisa comprar mais tempo para seguir vivendo.
“Eu sou muito cético quanto a esses movimentos”, rebate Hartmut Rosa. “Na verdade, sempre houve movimentos sociais e culturais contra a alta velocidade da modernidade. Por exemplo, em Paris, por volta de 1900, houve uma moda de andar com tartarugas em uma coleira, como forma de protesto. Mas, no fim, a velocidade sempre vence.”
Resta ainda a pergunta: aonde a aceleração nos levará? Alguns estudiosos como Raymond Kurzweil, otimistas, apontam para a singularidade tecnológica, um grande salto científico, previsto para o século XXI, capaz de resolver quase todos os problemas – econômicos, ambientais, sociais. Para o sociólogo alemão, contudo, o pior perigo é a aceleração se tornar uma forma de totalitarismo. E ele não tem nenhuma sugestão para controlar o monstro. “No momento eu não tenho sequer um esboço de como isso poderia ser feito.”