Ontem quis escrever um artigo. Hoje me impus a tarefa, o editor já não pode esperar. Na sua sanha cruel, acredita ele que o leitor é um ser ávido, como se texto fosse água ou ar. Parece que está fora deste mundo cão: falta água nas torneiras e está poluído o ar.
Não sei o que escrever, já me torci, retorci, já me sinto em um turbilhão, como se estivesse dentro da máquina de lavar: as ideias fugiram ladeira baixo ou evaporaram com o gelo seco. Sei que fugiram correndo em desabalada carreira para dentro das trincheiras, como um exército Brancaleone em dispersão. Todas as palavras bateram em retirada, como se uma bomba explodisse atirando estilhaços para todos os lados, ferindo gente que já não sangra. Não há personagens para descarnar. Não há tema para executar.
As ideias se rebelaram, como presos atirando a esmo dentro de um presídio, pulando muros para escapar do pelotão de fuzilamento ou das outras facções que se digladiam pelo poder.
Martelei ideias, como se afundasse um prego na madeira, que, sem piedade, foi se esgarçando. E nada.
Há um deserto em mim. Há um deserto em ti. Há um deserto si. E mais nada, só palavras escorregadias. E mais nada. Nada. Só o vento as desmanchando: tempestade de poeira.
Escrever é um ato doloroso, principalmente quando não há o que dizer sobre o nada. Escrever por escrever, escrever sem remexer nas entranhas do leitor, sem sacudir suas convicções, sem lançá-lo na dúvida, na desrazão.
Para que juntar um monte de palavras e colocá-las em procissão se não sabem aonde chegar, nem santo para o qual rezar. Paga-se um preço muito alto quem se impõe a lutar com as palavras, elas têm vida própria, escapam dos dicionários, voam, mergulham correm, escoiceiam. Não há como domá-las, triste gramático.
Algum energúmeno disse, outros tantos copiaram e, de tanto falar, as pessoas passam a não pensar: “Escrever é um ato de transpiração, não de inspiração”. Então, o que faço eu aqui, sem inspiração, nem transpiração? Aqui somente o ar é condicionado. Escrever sobre nada é o quê? Um ato de deserção? Arrancar árvores e não plantar nada, é ter um Saara de estimação?
Escrever sobre o nada, é um ato de desprendimento, muitas vezes de arrependimento, porque o leitor está ávido pelo factual: um tiro aqui, um escândalo ali; uma criança baleada aqui; uma mãe desesperada ali. O factual: fato atual. Bêbado em um jornal.
Creio que era sobre não escrever que escrevi e me penitencio, paciente leitor do deserto. Se você chegou até aqui, há um deserto em ti. Há um deserto em si.