O dia 10 de junho
Dia da Língua Portuguesa
Dia da morte de Camões
Dia Nacional de Portugal
“Minha pátria é a língua portuguesa”, palavrou Bernardo Soares, heterônimo de Fernando Pessoa(s). Corpo tocável. Serpenteia. Volteia. Falamos Português, pensamos em Português, sonhamos em Português e nos comunicamos em Português. Nosso mundo é um mundo em português: nosso idiomaterno.
Língua de mil cores, mil odores, mil sabores. “Última flor do Lácio, inculta e bela” recitou Bilac. “Gosto de sentir a minha língua roçar a língua de Luís de Camões” – cantou Caetano. Transpôs os muros de Roma, deslizou por bocas de menestréis e trovadores que a cantaram em canto da Europa até que, com padres e aventureiros, navegou para além-mar.
Antropofágica, deglutiu as línguas dos índios, as da negritude africana. Comeu pizza, sushi, quibe, salsicha, hambúrguer, macarrão. Bebeu uísque, vinho, arak, cachaça…
Camaleônica, tornou-se a oitava língua mais falada no mundo e a terceira maior expressão cultural da Europa. É a quinta língua mais usada para a comunicação nas redes sociais.
Portugal, Brasil, Angola, Moçambique, Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe, Cabo Verde e Timor-Leste são os países da Comunidade Lusófona. Têm uma população estimada em 360 milhões de falantes.
Por que se comemora o aniversário da Língua Portuguesa no dia da morte de Camões? Porque a obra de Camões é tão atemporal, quanto a língua que ajudou a conceber. Camões é “fogo que arde sem se ver”.
Foi a beleza e a pluralidade desta língua que produziu gênios como Mia Couto, Jose Roberto Agualusa, Ondjaki, Dina Salústio, Manoel Lopes, Pepetela, Paulina Chiziani, Machado de Assis, Graciliano Ramos, Guimarães Rosa, Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira, Cecília Meireles, Cora Coralina, Clarice Lispector, Florbela Espanca, Fernando Pessoa, Eça de Queirós, Valter Hugo Mãe…
Nunca falamos como aqueles que nos colonizaram, mas a base da nossa gramática está no Português, portanto jamais poderemos abrir mão das nossas raízes, do nosso DNA, da matriz de tudo o que produzimos, do nosso idiomaterno.
Ler para que, se você pode se esconder?
Houve um tempo em que o governo, para se mostrar preocupado com a crescente ignorância da juventude, inseriu a prova de redação nas provas dos vestibulares e fez uma campanha bombástica para estimular a leitura. A tática de “dominar um povo burro chegou ao limite”. Para conseguir tal milagre, criou um órgão pomposo, a “Câmara do Livro”. Nele instalou “burocratas”, “sabujos”, “apaniguados” nem imaginação. Aquele, que se acreditou o iluminado, pariu um slogan sugestivo: “Quem lê, viaja!”.
Viciados em drogas começaram a mergulhar nas páginas dos livros na esperança de alçar altos voos. Não conseguindo, rasgaram as páginas, enrolaram-nas para fumá-las. Vendo a inutilidade do feito, pararam para contemplar as letras, depois as palavras, os parágrafos, as páginas, os personagens. A partir daí, afogaram-se em histórias. Às vezes riam, às vezes choravam; ora olhos impregnados de horizontes; ora, afundados no chão. Ora perscrutavam os olhos de pessoas; ora, mergulhavam no seu íntimo.
Pais, entre preocupados e desesperados, começaram a monitorar os filhos na ânsia de saber aonde iria dar a tal viagem. Eles próprios tentaram experimentar. Cheiraram as páginas, mas só encontraram odor de papel com tinta. Não entendiam como uma capa com um miolo causava tanta euforia, desejo, medo… Então decidiram se aventurar pelas primeiras linhas, todavia pararam no primeiro parágrafo. Largaram. A droga não os drogava. Não como um lança-perfume. Não como a sonolência da maconha ou a avidez da cocaína.
Um problema, nascido dessa campanha, se tornou crônico: crianças não desgrudaram mais dos livros, andavam com eles debaixo do braço ou dentro das mochilas. Contavam histórias fantásticas em que viajavam para planetas nem pais nem professores imaginavam onde ficavam. Pior, começaram a construir mundos para si, livres das amarras de um sistema educacional que pretendia deseducá-las: professores e coordenados que tentavam moldá-las.
Os jovens pareciam loucos, choravam porque se identificavam com lugares já há muito esquecidos e pessoas estranhas, com as quais jamais tinham convivido, os tais personagens. Pior, contavam mentiras descaradas, absurdas, impossível de serem concretizadas. Chamavam a isso enredo. Desesperaram-se os dadores de aulas, pregadores de emoções baratas e lineares, que não conseguiam consolá-los, usando suas fórmulas amarrotadas.
Era comum ver pessoas nos parques, nas filas, nos consultórios, no metrô e, até mesmo nos banheiros, lendo. Era ainda mais comum ver aquele olhar perdido a sonhar com o destino de outras pessoas que as influenciavam. Leitores de todas as idades começaram a se embrenhar, contaminados pela doença das linhas e entrelinhas. Traziam consigo aquele olhar sôfrego de quem se revira em busca de um não sei quê, que nasce não sei onde, vem não sei como, e dói, não sei por que. Muitos mergulhavam nos significantes das palavras, para se travestirem com seus significados, como se se carnavalizassem. As cidades passaram a criar feiras, nas quais, ao invés de frutas e legumes, as barracas vendiam passagens para a imaginação, a alegria, o sofrimento, os desejos dos mais superficiais aos mais ocultos. O impossível se tornou possível; possível, impossível.
Crianças, jovens, adultos, velhos que se embrenhavam pelo intrincado mundo da literatura político-social, tornaram-se incrivelmente críticos. Críticos ferinos, intragáveis na sua sanha de justiça. Passaram a usar expressões ofensivas contra os poderosos, como: “Justiça social”, “Abaixo a censura” e coisas tais. Os que se dedicavam aos romances começaram a expor seus sentimentos com tal falta de pudor, que incomodaram os carolas e os violentos, dando-lhes motivos para essas mentes obtusas agredi-los fisicamente em quaisquer lugares, pois não conseguiam agredir suas convicções. Vários deles se dedicaram ao suspense e à ficção científica. Os civis passaram a usar suas habilidades dedutivas para resolver intrincados crimes, que a polícia não resolvia com suas armas. Os idiotas da objetividade acreditavam no seu poder de decidir destinos, não suportavam ser confrontados por personagens egressos da história, agora desvestidos pela literatura.
Os que se criam detentores de algum poder, vomitadores de regras, normas, leis, disseminadores do medo, começaram a se preocupar com o seu próprio futuro. Espalharam, sem nenhuma vergonha, o boato de que a leitura tornava as pessoas frouxas, sensíveis em demasia, desconectadas da realidade objetiva. Tecnocratas transformaram o boato na teoria do comportamento. Várias reportagens tomaram conta do horário pobre. Era preciso mudar esse estado de coisas. Urdiram, então, um plano demolidor. A primeira medida: aumentar o preço dos livros. A segunda: colocar capas monumentais com couro bordado com fios de ouro em obras ocas. Arrancaram as páginas, estupraram obras, para que pudessem servir como objetos decorativos. A terceira: contratar pseudoescritores para reescrever obras de grandes autores dando a elas roupagens simplórias. Dos dedos frouxos e imaginações capengas, brotaram histórias rasas de autoajuda, com o intuito de embotar, fazer uma lobotomia nos viciados. A quarta: transformar livrarias em papelarias, cafeterias, sorveterias, brinquedotecas tirando delas a sua essência. A quinta: encarcerar os críticos, arrancar sangue das suas frontes para que reneguem seus ideais e se tornem cidadãos papel higiênico.
Os “burrocratas”, subornados, submissos, sabujos fizeram pior, espalharam que ser escritor era ter uma espécie de doença da alma, um sério desvio de caráter. Todo escritor é um mentiroso compulsivo. Pior, afirmaram, de pés juntos que, quem lê, se torna chato, intragável, porque se torna crítico demais e ser crítico, é muito ruim, afasta os amigos.
Os comedores de dicionários, já deformados pela superficialidade, prolixos, puramente gramatiqueiros, ditadores da palavra, cultuadores das denotações olhavam desconfiados os aficionados pela subjetividade, os idealismos, os amantes das revoluções internas, das conotações sem entender o real motivo de uma pessoa passar a vida sendo governada, sem o desejo inerente aos humanos de governar. Não entendiam também, como leitores encontravam o equilíbrio entre a ficção e as evidências, tornavam o histórico, atual; o atual, histórico; o histórico e o atual, atemporais.
Os magnatas, comerciantes de palavras, organizaram grupos de mercadores de consciências, de acordo com a sua conveniência, para falarem o óbvio para os óbvios, tolices para os tolos, para os inseguros, os medrosos, os impotentes, os desiludidos, os iludidos, os tímidos, os inseguros. Conclamaram aproveitadores das desgraças alheias: executivos, psicólogos, técnicos de esportes, os que criam ter encontrado o milagre para atrair o dinheiro fácil, os que criaram modelos de qualidade de vida para parirem livros apelativos: “Como emagrecer em sete dias”. “Como deixar de ser tímido”. Batizaram o amontoado de palavras de “literatura” de autoajuda. No entanto, não só faltava a literatura como também a ajuda. Como o apelo comercial é enorme, as pessoas sempre estão doentes da razão, o grande negócio do negócio é fazer chorar. Para começar o ridículo périplo de páginas, cunharam coisas assim: “Toda caminhada começa com o primeiro passo”. Então, tolos viram sabedoria na ignorância.
De fantasias heréticas a lendas urbanas, de ilusões românticas a pesadelos realistas, a literatura foi perdendo gradativamente o contato com a palavra. Com o tempo, o óbito de personagens, enredos, tramas, fantasias foi inevitável. Morreram os leitores de livros, nasceram os internautas. Esses se entregaram ao Instagram, ao Facebook, como às balinhas de ecstasy. O Google passou a ser a casa, a consciência, seu mundo. No auge da excitação, os argonautas do ciberespaço inventaram até um novo idioma, sem as palavras. Comunicavam-se por gestos, grunhidos, carinhas, bichinhos, que substituíram momentos de amor, desespero, raiva, pudor, humor por frases desconectadas de textos ínfimos, sem enredo. As redes sociais pescaram a criatividade.
Houve um tempo em que as pessoas entendiam melhor o mundo, porque entendiam melhor as palavras. Sabiam que tudo que está dentro ou fora de cada um, na imaginação ou na razão, é traduzido por palavras. Ler é adquirir vocabulário, portanto entender melhor as coisas e poder falar melhor com elas e sobre elas. Talvez seja por isso que as guerras são cada vez mais frequentes. O discurso faliu. A diplomacia morreu As pessoas se tornam cada vez mais agressivas, não conseguem expressar mais suas emoções, se é que ainda as têm. Será que ainda têm capacidade de se indignar? O mundo de hoje está muito sem graça. A arte de transmutar o mundo em palavras, letras e significantes e significados faliu. A criação parece um deserto. Virou “cover” e “releitura”. A originalidade agoniza. Caminhamos massificados em um deserto criativo: uberização; macdonaldização.
O ENEM nunca cumpriu a promessa
Em artigo anterior, propus uma carta aberta ao senhor Ministro da Educação ou falta de educação, Abraham Weintraub, que adiasse a prova do ENEM. Nesse mesmo dia, em entrevista, ao vivo, na CNN, ofendeu a jornalista Monalisa Perrone. Para quem já ofendeu a China, segunda maior potência do mundo, nossa maior parceira comercial, destratar uma jornalista competente é fichinha. Ainda bem que a CNN saiu em defesa dela.
Weintraub, desde que se aboletou na cadeira de Ministro, mostrou total despreparo. Desmontou o INEP. Escreveu absurdos, deu mostras de racismo, misoginia, censura, falta de conhecimento da pasta que comanda e do país em que vive, posou de censor e se tornou um dos maiores fabricantes de “pérolas” da sabedoria de boteco, cada vez que abre a boca. A última sobre o ENEM: “Não é para atender injustiças sociais, é para selecionar os melhores”.
Suportou humilhações públicas: O presidente disse textualmente, em frente às câmeras de tevê, que ele é a vítima preferida dos seus “esporros” diários.
Na primeira aula, brinco sério com meus alunos: “Só uma coisa eu sei neste ano, o ENEM vai dar errado neste ano”. Um olha para o outro, o outro olha para o um, que cria coragem e pergunta: “Como é que o senhor sabe?”. Fácil:Nunca deu certo. Entre a proposta e a execução há buracos enormes. Entre a promessa e a concretização, há buracos maiores ainda. Olhe o questionário socioeconômico.
É óbvio que o ENEM DIGITAL não tem como dar certo. Escolas públicas estão mais do que sucateadas. óbvio que a prova deveria ser adiada devido à pandemia. Ontem afirmou nervoso: “Vai haver ENEM”. Hoje passou por cima do seu cadáver ambulante, foi obrigado a recuar para que o governo não sofresse uma derrota acachapante na câmara dos deputados. Parodiando Chico Buarque, a quem o ministro odeia, “a pandemia passou pela janela, só Abraham não viu”. E o vírus não tem data para ir embora. Se for.
Para piorar, o exame nacional do ensino médio foi adiado entre 30 e 60 dias. É o foguete brasileiro Saci Pererê, segundo Chico Anísio: Pode cair no Oceano Atlântico, entre o Brasil e a África, se não chover. Prepare-se, pule sete ondinhas, faça pedidos mirabolantes, porque o ENEM pode acontecer apenas em janeiro, se não chover. Cuidado para não perder o rumo: o Abraham pode recuar, esse é um governo gangorra.