Ribeirão Preto, 40 graus. Cidade amante do caos.
A Amazônia fica muito longe, lá no fiofó do mundo, terra de índio que não merece a quantidade de terra que tem: não é assim que se fala? Não é assim que se pensa? Não é essa a propaganda oficial? A Amazônia já foi mar, se tirarmos a cobertura vegetal, criaremos um deserto. Mas, não é de todo ruim, o Brasil não tem um Saara para chamar de seu. Pelo menos, com um Saara não haverá confusão, lá não há mico leão dourado. Não dá para confundir mico com camelo. Ah! Quer ganhar dinheiro? Compre camelos.
Com as queimadas, o agronegócio avança, a diversidade morre, o Saara nasce e o general nem precisará arrumar uma “explicação” menos sofrível que o vídeo promocional, fabricado para inglês ver. Países fizeram barulho para inglês ver. Empresário fez baruho para inglês ver. Enquanto, isso o mico leão dourado está à beira da extinção, na mata atlântica também à beira da extinção. Ações concretas para salvá-los? Esqueça. O Sinistro Ricardo Sales, que planta bois, continua ocupando aquela cadeira que adora passar a boiada. De acordo com seus interesses, o governo vai pagar 46 milhões, por um monitoramento que, mesmo desmontado, o INPE faz de graça.
Mais uma vez o governo, sem prestar atenção ou prestando bastante atenção nisso, corta verbas para combater o desmatamento e as queimadas. O Pantanal? Dane-se o pantanal também à beira da extinção. Tem pântano demais. Bicho demais. Será que não viraram churrasco ou não vêm morrendo de fome ano a ano. O Pantanal está secando, porque a Amazônia está morrendo. Nós estamos secando, porque a Amazônia está morrendo. Dane-se a Amazônia no fiofó do mundo. Dane-se o mercúrio que contamina o peixe que, contaminado, mata gente. E índio é gente? Há muitos Sinistros que acham que não. Que morram para desocupar o beco. Então, mudando de assunto para ficar no mesmo, esperemos a chuva negra desabar sobre São Paulo, um nova atração turística. Se desabar sobre o Rio de Janeiro, então, vão tentar destruir o Cristo negão que virará a próxima vítima de racismo e exclusão.
Ribeirão Preto está irrespirável. Com a atuação das sucessivas e competentes secretarias do meio ambiente, Ribeirão Preto tem reclamação demais, ações de menos, quando queima.E só. Ribeirão está irrespirável. Ribeirão tem a cara de pau de chamar de Botânico um bairro construído sobre uma mata protegida pelo IBAMA. Sobraram meia dúzia de árvores e um parque pelado com pista de asfalto para caminhada. Mas, muita gente enriqueceu. Grana em troca de ar. Quem tem um confortável apartamento e um belo casarão não está nem aí para respiração, a não ser quando não respira. Prédios e concessionárias e avenidas largas avançaram sobre outra mata, mas há o Curupira, aquele parque pelado, com pista de asfalto para caminhada. Os condomínios de luxo avançaram sobre a mata e as nascentes perto de um Shopping para os abastados. Vem aí mais um parque pelado com pista de asfalto para caminhada, igual ao que fizeram perto do Ribeirão Shopping. Aplausos para os secretários do meio ambiente. E para quem investe na prefeitura.
Lá vêm as eleições. Ribeirão Preto irrespirável: 40 graus,12% de humidade relativa do ar. Vamos respirar inseticida para acabar com as pragas da cana, da laranja. Inseticida contra o Raia que o parta. Já temos um mar de canas. Teremos um deserto vermelho. Não há mico em extinção, só há já porco em alta produção. Ribeiro Preto, cidade irrespirável, amante do caos. Ao invés de tratá-las, para que não caiam com a chuva. A secretaria finge que não existem. Acho que isso faz parte de um plano maior, muito bem articulado: deixá-las doecer, para caírem e provocarem tragédias durante as chuvas. Assim podem ser arrancadas, com as benesses se uma população que água calçadas, mesmo com a escassez de água. Reze, caros filhos da alienação de Ribeirão. A mata de Santa Teresa já foi, falta mais alguma? Caros amigos de infortúnio: tomara que ainda tenhamos que continuar a usar máscaras, deve ser muito ruim caminhar carregando tubos de oxigênio. O que fazer? Ficar escrevendo artigos? Sim. E também pressionar e fiscalizar essa estranha postura das autoridades ambientais, que vivem em universo paralelo, não necessariamente surreal, mas bem real. Não votar em que não tiver compromisso com o meio ambiente.
DESVIDA NAS ALTURAS
Há uma terra, tão terra, tão chão, tão seca chamada Cisjordânia. Sobre ela chovem bombas. Bombas desconhecem seres humanos. Chovem tiros. Tiros estupram o ar. Homens enterram suas vidas para manterem delimitadas suas fronteiras.
Há belíssimas histórias de mártires, que adubaram terras e mais terras com sangue. Há histórias cruéis de corpos crivados de balas. Uma argamassa os juntou. Chama-se ideal.
A história da Cisjordânia se confunde com a dos filhos, que os pais renegam: não pertence de jure a nenhum Estado. É também a de um povo forte, orgulhoso, guerreiro. Os jornais do ocidente só reconhecem essa terra, tão terra, tão solo, tão raiz, quando metralhadoras gritam, corpos aparecem empilhados nas ruas.
Não há páginas no ocidente dedicadas à arte e ao canto. A Cisjordânia só existe como bala, como tragédia. Então, eu, cultivador e manipulador de palavras, vou correr o risco de contar a história de um amor tão visceral, tão denso, tão guerreiro, que pode cortar como faca.
Rasmi Suwaiti gestou Jihad Al-Suwaiti há trinta anos. Criou-o, como aos guerreiros do seu povo: um homem capaz de dar a vida pelos seus. Não tenho a pretensão de contar a história desses dois seres humanos. Não conseguiria traduzir a força do lirismo trágico que ela encerra.
Rasmi Suwaiti viveu seus setenta e três anos, lutando contra a morte, encarando-a, olhando-a nos olhos. Venceu metralhadoras, prisões, fome, seca, canhões. No Hospital de Hebron, o câncer e o coronavírus a torturavam dia a dia, minuto a minuto, segundo a segundo.
O câncer começou a corroê-la, minando-lhe a resistência. O vírus oportunista atacou. Enquanto câncer a apodrecia, o vírus a sufocava. Certos inimigos cedem um último pedido ao moribundo; outros permite jamais. O câncer, pelo menos, permite a carícia através do toque, da troca de olhares, da fala; o vírus não, expulsa qualquer contato, sentido ou sentimento.
Jihad Al-Suwaiti, protagonista da própria história, subia pelos canos pregados nas paredes do hospital até chegar à janela de onde podia acompanhar a agonia de Rasmi Suwaiti. Precisava responder à interrogação de todos os dias: ela ainda estaria viva ou já estaria morta?
Este escrevinhador para por aqui, senão confinará no papel uma história tão visceral: mãe, câncer, vírus, filho, obstáculo, impotência, morte, amor e resistência. A resistência encerrada naquela magnífica foto de Jihad Al-Suwaiti, sentado na janela do hospital, lá nas alturas, com os olhos fixos na mãe doente, morta em vida. Com sua força, adubará a terra, tanto quanto a sua morte destroçou o coração do filho.
Toda crise traz consigo o umbigo
A teoria lapidar de Karl Marx: A história se repete, a primeira vez como tragédia e a segunda como farsa. A partir daí, pense: As pessoas sabem dos profissionais de saúde, de que são seres humanos, de que seres humanos morrem, de que arriscam suas vidas, de que muitos já morreram, de que estão no front contra a covid-19, porém creem que não fazem nada mais do que cumprir a obrigação de morrer por nós. Creem que o aplauso justifica a irresponsabilidade de evitar aglomerações. E os generais? Os generais nunca estão na linha de frente. Nunca se arriscam, a não ser tropeçar no tapete da sala de despachos, com ar condicionado. É o sempre normal.
Emmanuel Macron, incapaz de lidar com as crises políticas, econômicas, sociais e sanitárias de seu país, cunhou a expressão: o novo normal. Como político, sabe muito bem que as sociedades sofrem de Alzheimer. A língua portuguesa é impiedosa com suas ironias: a expressão “viralizou”. Jornalistas, filósofos, sociólogos, crianças repetem essa expressão, como um mantra. A história é também impiedosa em suas constatações. As canetas assinam as rendições sempre que é estabelecido o novo normal.
Em 1914, durante a primeira guerra capitalista mundial, o autor britânico, H.G. Welles, cunhou a frase: “A guerra para acabar com todas as guerras”. A frase “viralizou”. O mundo nunca seria mais o mesmo. E não foi. A reboque da guerra veio a gripe espanhola. A humanidade não aprendeu com o novo normal. Apesar da viralização, ódios ficaram represados. Ódio represado é pior que faca amolada. O fanatismo se candidata a ser o pai das tragédias.
A guerra para acabar com todas as guerras promoveu uma quantidade infindável de crises econômicas, políticas, sociais, sanitárias que desembocaram na Segunda Guerra capitalista Mundial (1939 – 1945?). Joseph Goebbels, “sinistro” de propaganda de Hitler, cunhou a frase: Uma mentira contada mil vezes, torna-se uma verdade. A Alemanha criou a fake News. O mundo nunca mais seria o mesmo. E não foi. Os governantes sempre pregaram o novo normal, mas nunca aprende. As disputas trouxeram a reboque a guerra fria, uma infindável coleção de massacres.
Macron, além de incompetente, não chega sequer a ser original. A mais nova expressão do pensamento cínico no meio dessa pandemia é isolamento de rebanho. Temos que dar razão a Zé Ramalho: Vida de gado / povo marcado / povo feliz. O rebanho finalmente vai se render às evidências: é massa de manobra. O novo normal será o isolamento de rebanho. Por mais que a ciência esteja correta, chegam a ser irônicas essas expressões, que desembocarão mais uma vez na velha história do salvador da pátria. A sociedade realmente sofre de Alzheimer.
O Paciente zero não é apenas um filme idiota de ficção, é a experiência com um homem ratinho branco que deu errado. Nunca, depois da segunda guerra mundial, estivemos tão perto da obsessão americana: um mundo recheado de zumbis: o novo normal.
O ladrão zero não é ficção. Sinistro? Desgovernador? Imperfeito? Empresa de fachada? É um claro distúrbio, uma esquizofrenia, desde Caminha. Em troca de esmola, o populacho permite à canalha se locupletar facilmente, porque não sabe o que é estado de calamidade pública. A humanidade é muito mais suscetível à desumanidade à humanidade.
O vírus escancarou o significado de estado de calamidade pública. O governo socorre a população com um benefício de urgência, devolvendo, a contragosto, os impostos pagos por ela. Algum “sinistro” disse: “Vamos chamar de benefício a esmola” e propagar o novo normal. A humanidade não aprende mesmo, os políticos nunca perdem seus empregos, os juízes também não, os diplomatas também não. Você perdeu? Já está começando a pagar a conta, sem perspectiva de recuperação. A crença na mentira faz um bem danado: o sempre normal.
A língua é o pior instrumento de guerra, que existe. Pior que faca amolada. Sinto destruir o seu sonho, desesperado e impaciente leitor. Cabral não descobriu o Brasil. Quem primeiro viu a natureza inebriante de Pindorama foi um anônimo no ponto mais alto da caravela. A descarada Carta de Caminha ao rei descrevia as belezas da terra, autoelogiava-se, para se desculpar do fracasso da expedição: não havia ouro à primeira vista, o que não quer dizer que não houvesse. Os padres poderiam engrupir os índios e encontrar. O escriba terminava pedindo emprego para um parente. Inaugurou o novo normal.