A Forceps

Será que estamos parindo seres humanos ou furacões, tornados, tufões? Como faremos para extrair deles alguma humanidade? A fórceps? Quantos jovens têm medo de colocar filhos neste mundo, que ajudaram a criar? Se não criaram, nada fizeram para mudá-lo. Esse é imundo, Raimundo. Todo mundo espera que alguém faça alguma coisa. Que coisa? Use forceps? É como deixar acumular a louça suja empilhada na cozinha para, mais tarde, depois de a preguiça bater em retirada, limpar com produtos biodegradáveis que, óbvio, os biodegradação.

É preciso aprender, não apenas sentar no banco da escola para decorar teorias e teoremas, a reaproveitar, a se autogovernar.

Com a minha geração, não aconteceu. Como está, quem sabe a história quebre esse ciclo perverso e os grupos de homens comecem a se rearranjar, a pegarem no cabo da vassoura, a se ouvirem, ao invés de só falarem? Esse mundo é imundo, Raimundo.

Queria ver intelectuais pegando em enxadas, vivendo, na prática, a teoria sobre a qual insistem, sem conhecimento de causa, dissertar. É uma metáfora insólita, reconheço, contudo calos nas mãos, cabo de enxada revolvem a terra para plantar.

São observadores de homens, estudam-nos para questionar como se comportam e como a patuleia aprenderá as teorias que não partem da experiência de pegar nas mãos da criança, para ajudá-la a se ajudar: pensar, interpretar, analisar, realizar, construir.

Gostaria de ver um escritor escrevendo poemas sentado no meio da floresta em chamas Arrancando de si emoções a fórceps, sem meias palavras, que, na frente de uma tela, confortavelmente, condicionado pelo ar condicionado, seria incapaz de arrancar.

Não me eximo, padeço dessas contradições. Que pena! Pena pela minha incompetência de construir mudanças. Nem a fórceps consegui arrancar, por isso essa angústia de também, por minha culpa, não conseguir respirar. Mas, não adianta apenas confessar: Minha culpa. Muita máxima culpa. Tenho que me reinventar amanhã também, depois de amanhã, até adubar a terra.

É impossível ser feliz assistindo crescer uma ilha de lixo plástico no meio do oceano, muito maior do que muitos países, que ninguém tem como dragar, contudo conseguir aumentar. Quem sabe, nela muitos sem-terra e sem teto poderão morar?

É impossível ser feliz em que há gente correndo para salvar-se da fome, sujeitando-se a imensos campos de concentração. Molambos, vítimas da fome, pedindo abrigo ao inimigo, o que exploravam e ainda exploram suas riquezas em nome do lucro que compra o poder de explorar para poder continuar. Esse mundo é imundo, Raimundo. Diamantes de sangue enfeitam pescoços nobres.

É impossível ser feliz em cidades divididas por bens de consumo. As pessoas nem sabem que são o maior bem de consumo de bens descartáveis. Que elas são apenas deglutíveis, um algoritmo, vítimas de uma imensa máquina de moer cérebros. Há um post, um filmezinho em que, sorridentes, repetem o mesmo movimento embonecado, até o próximo post engessado. Para ironia dos tolos, são esses os seus “stories”. Nos livros está escrito: “A história se repete como farsa”. A história é insolente.

Este mundo é imundo, Raimundo. Não falemos de governantes de onde, nem a fórceps, se consegue retirar seus interesses comezinhos, ambições de deixar seu nome cravado na história, pois o populacho a esquece assim que é escrita, como no ponto afinal deste texto.

Por extrema ironia, somos enterrados numa catacrese em que derramamos defensivos tóxicos todos os dias na terra que adubamos todas as semanas. Minha geração entrega em tecla o universo que recebeu em papel que queimou até se sufocar. Quem se deu conta de que os olhos vermelhos e as lágrimas nada tinham a ver com chorar?

Este mundo é imundo, Raimundo. Pisa no pescoço de um negro até sufocá-lo. Joga álcool no corpo de um negro para incendiá-lo. Este mundo é imundo, Raimundo. Queria ver o pescador ficar com o anzol esportivo preso na boca. Puxá-lo do closet. Quem sabe doa ou rasque a cara na hora de tirar o anzol com alicate. Uma marca para a vida que marca. O caçador sentado na arma com a qual pretende matar. Não se tirar consegue a fórceps a sanha cruel de quem mata por esporte e muito menos de quem manda matar, menos ainda com que pedaço do elefante, da Girafas, do gorila, do boto o senhor das armas vai lucrar. Queria vê-lo se sentar no cano de uma delas, por o dedo no gatilho e apertar.

O doutor me disse com palavras de quem abriu e fechou corpos ao longo da sua experiência de anos de trabalho em uma UTI, que o fórceps é um instrumento para aliviar, criar espaço, para a criança passar? Quando vamos aliviar para a humanidade passar? Como fazer isso, sem esperar que o pastor venha suas ovelhas guiar? Até quando vamos esperar que a próxima cerca seja implantada para que não possamos nos desviar.

 segunda-feira, 27 de setembro de 2021

Verbalizar

Ontem quis escrever um artigo. Hoje me impus a tarefa, o editor já não pode esperar. Na sua sanha cruel, acredita ele que o leitor é um ser ávido, como se texto fosse água ou ar. Parece que está fora deste mundo cão: falta água nas torneiras e está poluído o ar.

Não sei o que escrever, já me torci, retorci, já me sinto em um turbilhão, como se estivesse dentro da máquina de lavar: as ideias fugiram ladeira baixo ou evaporaram com o gelo seco. Sei que fugiram correndo em desabalada carreira para dentro das trincheiras, como um exército Brancaleone em dispersão. Todas as palavras bateram em retirada, como se uma bomba explodisse atirando estilhaços para todos os lados, ferindo gente que já não sangra. Não há personagens para descarnar. Não há tema para executar.

As ideias se rebelaram, como presos atirando a esmo dentro de um presídio, pulando muros para escapar do pelotão de fuzilamento ou das outras facções que se digladiam pelo poder.

Martelei ideias, como se afundasse um prego na madeira, que, sem piedade, foi se esgarçando. E nada.

Há um deserto em mim. Há um deserto em ti. Há um deserto si. E mais nada, só palavras escorregadias. E mais nada. Nada. Só o vento as desmanchando: tempestade de poeira.

Escrever é um ato doloroso, principalmente quando não há o que dizer sobre o nada. Escrever por escrever, escrever sem remexer nas entranhas do leitor, sem sacudir suas convicções, sem lançá-lo na dúvida, na desrazão.

Para que juntar um monte de palavras e colocá-las em procissão se não sabem aonde chegar, nem santo para o qual rezar. Paga-se um preço muito alto quem se impõe a lutar com as palavras, elas têm vida própria, escapam dos dicionários, voam, mergulham correm, escoiceiam. Não há como domá-las, triste gramático.

Algum energúmeno disse, outros tantos copiaram e, de tanto falar, as pessoas passam a não pensar: “Escrever é um ato de transpiração, não de inspiração”. Então, o que faço eu aqui, sem inspiração, nem transpiração? Aqui somente o ar é condicionado. Escrever sobre nada é o quê? Um ato de deserção? Arrancar árvores e não plantar nada, é ter um Saara de estimação?

Escrever sobre o nada, é um ato de desprendimento, muitas vezes de arrependimento, porque o leitor está ávido pelo factual: um tiro aqui, um escândalo ali; uma criança baleada aqui; uma mãe desesperada ali. O factual: fato atual. Bêbado em um jornal.

Creio que era sobre não escrever que escrevi e me penitencio, paciente leitor do deserto. Se você chegou até aqui, há um deserto em ti. Há um deserto em si.

 sexta-feira, 24 de setembro de 2021

NÃO CONSIGO RESPIRAR

Hoje assisti a algumas situações torturantes e, ao mesmo tempo, tocantes pelo horror e pela sensatez, trabalho profícuo, solidariedade e autodefesa. Imagens causadas pela irresponsabilidade ou maldade ou ambas de alguém muito de tudo que há de ruim.

O grande Dirceu Martins, acostumado a áreas de conflitos, subir e descer cordilheiras, nos descreveu, com seu texto visual, repleto da sua obsessão pelo detalhe e pela captação das emoções, a imagem do horror que não víamos: o desespero de moradores ajudando bombeiros a apagar o fogo que poderia consumir o pouco que armazenaram durante uma vida de trabalho com o risco das próprias vidas. O trabalho inútil, mas incessante de um garoto persistente, armado com um balde d’água.

O repórter tem outra grande qualidade, não se omite atrás do microfone, de jogar na cara do telespectador sua indignação. Não se descompromissa de nos exportar suas emoções. E as imagens disseram muito, várias vezes, tanto quanto as palavras. O cameraman, em perfeita sintonia com o momento, trouxe para a tela aquela sensação sufocante: “Não consegui respirar”.

Por um momento, o repórter me levou a George Floyd, ao tentar, quase sufocado, colocar para fora a frase: “Não consigo respirar”. Até os bombeiros não conseguiam respirar, mesmo que armados com equipamentos especiais para combater o fogo.

Obviamente os motivos são muito diferentes, mas a desumanidade é a mesma. O morador, aliviado, afirmou: “Alguém fez isso, fogo não pega sozinho”. Empurrando para dentro da cena, não conseguia respirar, até que o homem se viu aliviado.

Sem querer, talvez querendo, Dirceu levantou a questão que pode se tornar um movimento: “Não temos como respirar”. Olhei pela janela: uma cidade envolta por uma neve. “Ribeirão Preto, Batatais, Franca, Restinga, Araraquara e região não conseguem respirar”.

Pior, policiais, cheios de boa vontade de ajuda pessoa a respirar, foram torrados pelas chamas criadas pela irresponsabilidade ou responsabilidade com o próprio bolso de alguém que colocou fogo no mato. Esse ser ou seres conseguiram: o mato queimou, as estradas viraram guias de carros, caminhões e ônibus parados. Eles também “não conseguiam respirar”. Até quando?!!! Até quando respiraremos? Será que pondo a culpa na repórter que mostra a “previsão” do tempo??? Até quando???

 quinta-feira, 16 de setembro de 2021