Dona Bernarda no meio dos livros
Por Prof. Luiz Cláudio Jubilato – diretor do Criar Língua Portuguesa e Redação
D. Bernarda tem aquele sorriso afável e maroto que só as avós são capazes de portar. As experiências lhe conferem o direito de fazer o que bem entender sem parecerem ridículas. Personagem da magistral Nathália Timberg, em 'Amor à vida à vida', aparece, em quase todos os capítulos, acariciando um livro (de papel, diga-se de passagem), como uma criança travessa. Com seu sorriso da atriz que se misturou ao personagem e não mais sabemos quem é quem, indica-o aos outros. Exibe-o sempre acompanhado de uma convincente síntese.
No folhetim de Walcyr Carrasco, há também um escritor: Thales (Ricardo Tozzi) é o personagem ambíguo manipulador e manipulável, que tentou conquistar Natasha (Sophia Abraão) escrevendo um livro sobre o seu arrependimento ao trair o amor da irmã dela. Nos próximos capítulos, pode provar do próprio veneno. Natasha, volta e meia, mexe com seus sentimentos usando, para isso, um livro. É o conquistador sensível, conquistado pela razão, provando o veneno da traição dos seus princípios, como ocorreu com tantos autores e povos ao longo da história.
Alguma coisa de muito novo e muito interessante acontece nos folhetins da Rede Globo: uma espécie de 'cruzada' em favor do livro. Não há uma novela ou minissérie da emissora em que um personagem não discuta, mesmo que rapidamente, o enredo, os personagens e/ou o autor de uma obra. No folhetim de Walcir Carrasco, 'Amor à vida', há uma profusão de leitores. "Merchan" puro das grandes redes de livrarias, para promover autores de qualidade duvidosa? Poderiam alegar alguns. Pode ser, mas esse tipo de produto não era veiculado em nenhuma circunstância e, além de tudo, poderia ser outro, uma geladeira, por exemplo, um banco… E olhe que o Itaú, tem o projeto Itaú Cultural para levar livros às crianças. Por sinal, muito interesante. Não sou funcionário, nem do Itaú, nem da Globo e, antes que alguém diga, não fui pago para escrever este artigo. O mote dele é, inclusive, a massificação do livro, seja como for e de que forma for é por quem for.
No programa do Faustão, vejam só, há indicações de algumas obras. Literárias? De qualidade duvidosa? Goste-se ou não, ali estão indicações de livros. Jogada de marketing? É claro. Mas, o produto poderia ser outro: sandálias, biscoitos… Algum purista e/ou moralista poderia questionar: por que você trata sempre livro como 'produto'? Para não soar hipócrita. Desde o século XVIII, a burguesia trata as obras de poetas, romancistas, contistas e toda sorte de criadores e pensadores, como produtos. O talento para a venda sempre valia mais que o talento criador.
Sou da opinião de que as pessoas devem começar a ler a partir de um tema que lhes interesse, mesmo que indicado por alguém, vá-la, que esteja interessado apenas em faturar com vendas. Conheço histórias de pessoas que começaram a ler encontrando livros no lixo. É o caso do Otávio César Santana, criador da biblioteca Itinerante do Morro do Alemão. Assim que ela passa, as crianças correm atrás dela. O trabalho é feito por amor e idealismo. Não vende nada.No morro, nasce uma comunidade de leitores. Nem a violência do lugar a inibe.
Luto para divulgar o livro em qualquer lugar. Minha escola tem o Projeto 'Criar Leitores'. O projeto leva livros a praças, pontos de ônibus e outros lugares de grande circulação. Simplesmente os deixa ali. As pessoas os pegam e, pode parecer brincadeira, mas não: elas saem lendo. Rindo, gostando, como se fossem crianças.
No programa do Jô, volta e meia, um escritor é entrevistado. Jogada de marketing de grandes livrarias? Que seja. Mas, poderia ser de um outro produto. Em feiras de livros, não ocorre a mesma coisa? O livro não é um produto? Não é em torno dele e, por causa dele que as pessoas lotam praças, teatros, galpões, centros culturais? Os autores dão palestras. Participam de debates. O objetivo não é expor o autor para que ele venda mais suas obras ou as tire do ostracismo?
Pode-se discutir a temática e/ou a qualidade da obra tanto quanto a do autor, mas é relevante o livro se tornar elemento recorrente nos folhetins da Globo, um grande veículo de massa, a ponto de se tornar personagem. O galã, Cauã Raimond, o Leandro, protagonista da minissérie, 'Amores roubados', não conquista as mulheres mais belas valendo-se de um livro de poemas do pernambucano Joaquim Cardozo?
Roberto Saviano, ameaçado de morte, autor de 'Gomorra' e de 'A beleza e o inferno' vive escondido, protegido pelos carabinieri (polícia italiana), pois seus livros demoliram a máfia italiana. Salman Rushdie, autor de Versos Satânicos, também foi condenado à morte pelo Aiatolá Khomeine, líder do Irã, porque consideradou sua obra ofensiva ao profeta Maomé e "blasfêmia contra o Islã". É a sina de autores que resolveram, à custa da própria vida, mudar um mundo. O livro é capaz disso. A Bíblia não é?
No Natal, não sei se o consumidor, influenciado ou não por essa 'cruzada' global, lotou as livrarias. Foram os únicos lugares em que presenciei longas filas. As bermudas, camisetas, tênis e pijamas, tradicionais presentes, nos famigerados amigos secretos, renderam-se ao livro. Valeu D. Bernarda/Nathália. Seu sorriso encheria de prazer a livraria de Franz (Bruno Gagliasso, em Jóia Rara) e derreteria Os Himalaias. O seu poder de convencimento anda mudando comportamentos.
Se grandes veículos de comunicação e até bancos ajudam a massificar a leitura, se você teve paciência de chegar até aqui, num texto deste tamanho, o mundo, então, ainda tem salvação.