O CORPO QUE HABITAMOS

RÚBIA  ALVES

E então, depois de longos dois meses comprando apenas roupinhas amarelas o médico sentenciou: “- É um menino”. Dito isso, ele mais do que conceituou o gênero daquele ser, ele determinou o comportamento e as escolhas dos pais daquele bebê que passou a ser um menino, que passou a ter o quarto azul e a ganhar brinquedos de carrinho ao invés de bonecas. Com apenas uma palavra, os pais já sabiam o que deveriam fazer: educar um menino, não uma criança, educar para que não fosse chamado de marica, para que fosse homem agindo como um, para que não deixasse ninguém bater na cara dele, para não chorar na frente das pessoas e para, pricipalmente, gostar de meninas.

Mas o que o os médicos poderiam ver no ultrassom que iria garantir que aquele bebê fosse um homem ou uma mulher? A resposta, embora pareça óbvia, não é. Pois o que diferencia um homem de uma mulher não é apenas a genitária masculina ou feminina. Um homem, que perde seu pênis devido a um acidente, ou por causa de um câncer ou até mesmo por consequências da diabetes (o que é mais comum do que se imagina), deixa de ser homem? E uma mulher, que decide tomar hormônios e fazer uma cirurgia de gênero, continuará sendo mulher? O corpo determina o que a pessoa é ou já somos capazes de nos libertar dele?

A questão do gênero, não raras vezes confundida com sexualidade, é um assunto que ainda tem várias interrogações e poucas respostas. Ainda considerada uma patologia e há pouco tempo, um crime, a mudança de gênero colocou milhares de trans na clandestinidade e ainda deixa desamparada uma multidão, que é discriminada e agredida (quase sempre da forma mais humilhante possível) por uma sociedade cheia de tabus preocupada em se autoafirmar e pouco interessada na alteridade.

Mas, a intolerância e a falta de compreensão entre os homens causa sérios danos  e prejuízos a todos e a qualquer um, como fica evidenciado nos relatos e nos índices exorbitantes de preconceito em relação ao gênero e à sexualidade. E não é preciso ser necessariamente um transgênero ou um homossexual para ser vítima, sim, vítima, dessa violência, basta ser confundido com um, como foi o caso dos irmãos gêmeos, José Leandro da Silva e José Leonardo, que sairam abraçados depois de uma festa e foram agredidos até um morrer e o outro ser internado. E do pai, 42 anos, que andava de mãos dadas com o filho, 18 anos, e perdeu parte da orelha direita depois de ser agredido por dois homens homofóbicos.

A ciência médica pode considerar o transgênero um doente, mas são os transgêneros que sofrem com o preconceito doentio de uma sociedade que os expulsa direta ou indiretamente das escolas, que os coloca em subempregos e que não sabe cuidar, ou melhor, lidar, com pessoas que apresentam uma riqueza e determinação enorme. E essa sociedade, formada por: religiosos fervorosos, machistas, heterossexuais incomodados com homossexuais, etc, é considerada sã, até agora. E até agora porque ainda acreditamos que quando o médico olha no ultrassom e diz é um menino ele está certo, confiamos piamente de que aquele bebê é um menino, e mais do que isso, julgamos necessário criarmos meninos e meninas de formas distintas e quase sempre baseada numa tradição repleta de valores que não são valores e que costuma deixar bem claro quem deve exercer o papel do opressor e quem deve ser o oprimido.

 

Rubia Alves

 quinta-feira, 26 de junho de 2014