Esse Texto Vocês Vão Odiar, Tenho Certeza
(O BOCA DO INFERNO – 22/5/14)
“Antes de os portugueses descobrirem o Brasil, os portugueses tinham descoberto a felicidade”. José Oswald de Andrade.
Nestas praias paradisíacas, de um céu azul anil, desembarcaram piratas bêbados, doentes, famintos para nos acorrentar, estuprar nossas mulheres, roubar nosso Pau Brasil. Nesse tempo, usávamos ervas para curar nossas feridas, não fazíamos a menor ideia de como empunhar um fuzil. Logo depois, desembarcou por aqui um homem com roupas esquisitas, um sobrenome deveras curioso, hábitos estranhos: um tal de Sardinha. Quase morreu afogado. Para um povo antropófago, acostumado a comer peixes enrolados em folhas de bananeiras, não houve problema algum. O mar deixou esse petisco muito bem temperado. Foi deglutido com mandioca e cebola, em fogo baixo, bem assado.
Logo depois do pescado e assado Sardinha, deram, com os cornos no nosso paraíso, um povo vestido de preto trazendo nos ombros uma coisa maldita, que chicoteava e matava em nome de Deus: a tal da Inquisição. Vestiam-se como corvos, caçavam nativos com uma mão na espada e a outra na cruz. Usavam também a chibata ou cutucavam os corpos feridos com um tição. Os que eles chamavam de índios ou se convertiam ou viveriam, para sempre, sem ver a luz. Pusemos para correr, à custa de muitas vidas inocentes, esses urubus. Depois dessa fuga, índios, negros, mestiços, voltaram a andar nus.
Depois pularam em cima de nós os piratas franceses. Vinham carregados da ilusão de também nos embebedar, para nos amarrar, dominar, estuprar. Expulsamos, com nossos tacapes, aqueles frufrus fedorentos. Lutamos, obrigados, ao lado de um tal Estácio de Sá, mais tarde, também o pusemos para correr com tanto medo até se cagar. Não gostamos nem um pouquinho dos seus intentos. O safado fugiu para as terras de além mar. Só ouvíamos o barulho dos portugueses entrando em canoas, como ouvíamos os seus lamentos. Os holandeses empurrados por uma tal Cia. das Índias Ocidentais quiseram a cana de açúcar, ouro branco, que plantávamos em Pernambuco. Tanto eles, quantos os franceses foram expulsos por índios e negros, mestiços, enfim brasileiros, na ponta de um trabuco.
Mandamos embora um imperador português para assaltar um Portugal decadente. Em seguida, devolvemos para a Europa outro imperador. Esse, porém, era mais decente, diferente. Amava o Brasil. Mas, quem não ama, exceto o brasileiro demente? O velho foi embora, deixando o produto do roubo, como se fosse um favor. Imigrantes chegaram de todo lugar, atrás de um país de braço abertos para se entregar a um povo salvador. Cultivaram a terra dos coronéis como escravos, comendo os restos de comida, como porcos, curtiram sua esperança com a dor. Depois de muita porrada, encheram a boca um sorriso próspero, mas irônico. Misturaram-se tanto aos brasileiros, até inventaram juntos uma nova língua, o “português macarrônico”.
Passamos pelas mãos de cruéis dominadores. Povos “achados”, como o nosso, sem pai, cuja mãe é uma caravela, não escapam das armas, armações, roubos, corrupção, submissão, carregaram na pele, no suor, nas fezes, os seus fedores. Ao contrário do que se conta nos livros de história, somos lutadores. Batemos na cara deles, com gana suficiente para registrarmos cada um dos nossos atos na memória. E por que, então, não temos memória? Porque, povos descobertos, aprendem a esquecer a barbárie. Interessa ao dominador que nos sentamos tolos, toscos, burros, esquecemos o que é morder, nos impingem a ideia de que nossos dentes estão cheios de cáries. É fácil imitar como papagaio, implicitamente isso interessa a alguém. O difícil é lutar para não se sentir um Zé Ninguém. Lindo é adorar uma beleza imposta. Feio é se curar do complexo de se sentir uma ferida exposta.
(Continua – NUNCA FOMOS DOMINADOS, BAGUNÇAMOS A DOMINAÇÃO)