Do “boa noite” ao “suave na nave”: a mudança na fala dos telejornais
Guilherme Nali – jornalista de TV e historiador – guilhermenali@gmail.com
“Depois do upload daquele vídeo no Facebook, muita gente deu um share e o post acabou se transformando num viral. Você viu a menininha dançando igual a Aretha Franklin? Hoje é um meme no mundo inteiro e já corre no insta, WhatsApp e em muitos smartphones afora.”
Definitivamente a língua portuguesa falada no Brasil mudou. E quem disser que os termos acima não fazem parte do nosso vocabulário, ou servem para descaracterizá-lo, está completamente por fora.
A frase inicial está abarrotada de estrangeirismos. Alguns, inclusive, já estão nos nossos dicionários, com grafia própria – a palavra pick-up (veículo utilitário) pode ser escrita picape, por exemplo. E o que promove a absorção desses termos é exatamente a popularização de seus significados. Já que o Brasil é essa salada de etnias e culturas, não há nada mais brasileiro do que usar palavras estrangeiras. Talvez a palavra identidade seja o ingrediente que explique o que dá o tempero a essa cumbuca.
A língua de um povo é o que define sua cultura, e por sua vez sua identidade. É a palavra em conjunto de signos e significados que compõe a forma com que uma comunidade se expressa, se relaciona e compreende o mundo a sua volta. Se a língua está em transformação isso significa que a identidade de seu grupo também está. Neste movimento de mudança o olhar diante dos fatos também ganha uma lente de aumento. O que antes passava despercebido ou ficava apenas na esfera privada, dentro das relações pessoais e familiares, ganha outras proporções.
O que motivou a primeira frase foi um fato cotidiano, de uma pequena criança americana, dando show de dança em uma apresentação do balé da escola, imitando a grandiosa Aretha Franklin, rainha do jazz, soul e R&B. Até aí nada que não aconteça desde sempre, em escolinhas pelo mundo afora, nos eventos promovidos para os pais acharem tudo bonitinho. Mas o vídeo gravado pelo celular, ou melhor, um smartphone, e depois colocado no YouTube pela mãe da menina tomou proporções inimagináveis pelo mundo. Da internet para programas de televisão, de entretenimento, e dos telejornais.
Isso porque muita gente teve uma sensação familiar ao ver os passos, caras e bocas daquela criança sendo apenas criança. A identidade está no cotidiano e se fortalece quando os indivíduos se reconhecem. Os meios de comunicação têm esse papel.
A internet, como responsável pela convergência das mídias, pelas redes sociais promove um fator que eleva o conceito de comunicação de massa a enésima potência. Ela faz com que telejornais tradicionais, como o Jornal Nacional da Rede Globo, divulguem o que antes era inimaginável se ouvir da boca de Willian Bonner. A web, cada vez mais feita pelos próprios usuários, hoje produtores de conteúdo e informação, ampliou o conceito do que é notícia.
Óbvio que esses “jornalões” estão pautados em pesquisas sobre audiência, migração de telespectadores para canais fechados e a internet, faixa etária consumidora dos produtos vendidos nos comerciais, etc. E nessa briga por atenção há uma necessidade urgente de se adaptar a forma de trazer notícias ao público. Este, por sua vez, está cansado de padrões antigos, textos complicados, do que leve mais de três minutos para registrar a mensagem. O dinamismo está de acordo com a velocidade que a informação é produzida, com a correria do mundo conectado. E o que vemos na tela são tentativas.
É inegável que a mudança na fala do dia a dia é só uma consequência do desenvolvimento tecnológico. Mas a comunicação tradicional, diante da complexidade dos grupos distintos em convivência social, não acompanha tal velocidade. Como a teoria do economista britânico e pastor anglicano Thomas Malthus, do começo do século XIX, que explicava que a produção de alimentos não acompanhava a alta da natalidade na idade média. A primeira se fazia em PA – progressão aritmética, ou soma – e a segunda em PG – progressão geométrica, ou multiplicação. Logo haveria muito mais gente do que comida. Só que ele não contava com a indústria para enlatar tudo, colocar um pouco de sódio e conservantes, e abastecer o universo. Assim é a nossa língua com a tecnologia. E logo a industria cultural vai achar seu jeito de suprir a demanda.
Nessa adaptação ou transformação da linguagem para a TV conquistar o público da internet vemos os programas de entretenimento no “tudo pela audiência” (já tem até alguns com esse nome). Esses estão mais adiantados do que os telejornais. Exemplos interessantes de tentativas são: o Bom dia São Paulo (Globo), com o Rodrigo Bocardi em um paulistanês irônico, cheio de gírias e jargões; o Balanço Geral (Record), com seus vários apresentadores pelo interior, esbravejando o que muita gente gostaria de dizer; a Rachel Sheherazade (SBT), do SBT Brasil, com caretas e opiniões polêmicas; as expressões do Chico Pinheiro (Globo), no Bom dia Brasil, como “vida que segue” ou “hoje é sexta-feira graças é Deus”. Uma evolução e tanto a comparar com o começo dos anos dois mil – nem precisamos voltar nas primeiras transmissões, porque seria injusta a comparação.
Outra tentativa de conversar com todos os públicos é o post diário de chamadas no Facebook dos telejornais. Um dos assíduos é o César Tralli (Globo), do SPTV. Essa promoção na rede social, a aproximação dos navegantes da net, tem sido incorporada pelas afiliadas. Mas será que isso significa mesmo estar próximo de uma linguagem popular, de como as pessoas se comunicam no mundo virtual ou até mesmo pessoalmente?
O jargão “desengessar”, dito muito atualmente nas redações, significa “seja mais natural”. Ora, o termo de forma ou outra assume que o padrão utilizado é próprio do veículo, e que apesar de falado, está longe do coloquial. Ou seja, é engessado. Fica a pergunta: será que é possível chegar a essa informalidade da língua falada, com características da internet, em programas de exibição nacional, sem que haja qualquer estranhamento dos telespectadores na questão credibilidade? É preciso lembrar que esta tal credibilidade é algo construído ao longo de anos a fio muito em função deste tal padrão engessado.
Algumas considerações da professora Dra. Valéria Paz, linguista e consultora da Globo, podem ajudar a responder esse dilema. Segundo ela, o texto do telejornal está entre a norma culta da língua, formal, com a coloquial, a informal. O texto do telejornal, de acordo com a especialista, é um híbrido, une os gêneros, e assume uma mediação quando primeiro é escrito e depois falado. Por isso mesmo, sempre será uma simulação do natural.
Bravo, professora Valéria! Só isso basta para que as tensões ao produzir um texto falado na TV diminuam e a tão buscada naturalidade diminuam. Ao mesmo tempo nos desobriga a achar fórmula para isso, já que não há fórmula para a língua falada. E assim nossa questão de debate muda. Deixa de ser o “estamos no caminho certo ou errado?” e passa a ser “estamos experimentando as múltiplas possibilidades da língua”. Ponto.
Demore o tempo que for, fato é que as mudanças na fala da TV, sejam elas em telejornais, programas de entretenimento ou qualquer outro gênero, talvez não acabem tão cedo. O que fica, então, é o velho bom-senso. Como diria Aristóteles, o bom-senso é nossa capacidade intuitiva de encontrar um meio termo para nossas ações. Sabe aquele limite entre o chique e o brega? De resto tá valendo, tá suave na nave, como diria o Chico Pinheiro.
Sugestão de leitura e reportagem:
http://revistalingua.com.br/textos/115/uma-linguista-na-tv-346159-1.asp