ESSA DROGA DE LÍNGUA PORTUGUESA!

Thiago Carbonel

Instruções: recomenda-se que você leia este texto próximo a um espelho, por será requisitado que contemple seu reflexo em algum momento da leitura.

Você já parou para pensar em quem é você? Ou melhor: o que é você? Eu estou cá ponderando com meus botões que, muito provavelmente, pode até ter parado, mas não pensou direito. Pois bem, estou aqui, nas tramas deste texto, para ajudá-lo, ajuda-la, ajudá-l@.

Comecemos com uma premissa básica, bem básica: a resposta que eu espero e que você deveria esperar não é seu nome, seu endereço, o time para o qual torce, a escola de samba de seu coração. Tudo isso é uma parte pequenininha do todo magnífico de seu verdadeiro “eu”, aquele que espero encontrar com minhas artimanhas retóricas. Um “eu profundo”, formado por uma espécie de DNA que não tem muito a ver (e não “haver”, ok?) com genética ou biologia; uma longa fita simbólica que contém absolutamente todas as partículas de uma memória que você talvez não saiba que tem, mas lhe garanto que estão aí, nas gavetas emperradas de uma parte de sua consciência e na quase totalidade de seu inconsciente. Peço-lhe, neste momento calma, pois não estou pirando no papo psicanalítico; estou sendo um pouco metafórico, outro tanto metafísico.

Creio que esteja em uma cadeira ou poltrona confortável, ou algo análogo, ok? Relaxe, respire fundo e prepare-se para o que tenho a lhe dizer: há algo aí nesse seu eu que você nunca viu, uma espécie de rosto desconhecido que preciso lhe apresentar. Não se assuste, não vai doer nem é algo que possa lhe machucar. Ao contrário, é um sujeito bem bacana, que está aí desde que você era bem criança e começou a balbuciar suas primeiras palavras. Na verdade, foi por causa delas que ele se assenhorou de um lotezinho de seu eu. Feita a advertência, pegue o espelho ou dê um jeito de ver sua imagem neste exato instante.

O que você vê? Uma cara de bolacha? Rugas? Talvez algumas olheiras? Um rosto que podia ser melhorzinho? Hum, façamos o seguinte: continue lendo como se estivesse com os olhos fechados, deixe minhas palavras o guiarem, confie em mim.

Olhos fixos no texto, imagine uma planície meio árida, com pouca vegetação, apenas algumas árvores baixinhas, de tronco retorcido. Um vento seco, levemente frio bate em seu rosto. É quase dia e, sobrepondo-se aos sons da manhã que se anuncia, você ouve o som de cavalos trotando e muitos homens falando alto uns com os outros. Achegando-se sorrateiramente por detrás de moitas densas, você reconhece que esses caras são cavaleiros de armadura, ostentando estandartes com cruzes vermelhas. Eles estão se movimentando com nervosismo, alinhando-se na margem de um rio e em busca, ao que tudo indica, de um lugar onde possam atravessar. Você repara, então, que, do outro lado, há uma cidade em volta de um morro, no topo do qual há um castelo rústico. Que sons são esses? O que esses homens estão falando? Quem é esse sujeito montado no cavalo mais robusto e cujo semblante você acha que já viu?

De súbito, um torpor toma conta de seu corpo e o chão desaparece. Você, agora, contempla uma luta e ouve o nome Afonso Henriques ser bradado em júbilo e glória; do alto, você vê Lisboa ser tomada pelos cavaleiros cristãos e já identifica uma ou outra palavra. A imagem dura pouco, porém; como uma cortina de fumaça almiscarada, sua consciência flutua entre os membros da nobreza portuguesa e seus ouvidos se encantam com o som cadenciado do banjo e do alaúde, tocados pelo que lhe parecem cavaleiros em um momento de “relax”. O que eles declamam junto com a música lhe parece familiar, tem um quê de língua portuguesa, num ritmo que você jura já ter escutado.

Eis que, do nada, irrompe um figura cômica paramentada como um ator de comédia, declamando versos que mais parecem falas e todos no recinto riem. Você não entende bem, mas se envolve no riso, se solta na trama que parece envolver um anjo, um diabo e figuras engraçadas, quase todas pecadoras. Seu riso se expande e com ele sua consciência, e, então, o você acorda numa tapera no meio da mata e contempla um homem que escreve compulsivamente, esforçando-se para se concentrar com o único olho que tem. Ao seu lado, uma bela e exótica indiana ignora sua presença no ambiente. Fumaça e cheiro de maresia envolvem seu eu já meio surtado e eis que está em alto mar, ouvindo os gritos de júbilo de marinheiros. Sua intuição é que eles acabaram de fazer algo extraordinário, mas você olha para o céu e vê o dia se transformar em noite com o levantar de um gigante, uma criatura que é o próprio rochedo da costa, perto do navios.

Apavorado, você some de novo e se vê entre pessoas caminhando por Lisboa. Em princípio não tem certeza de onde está, mas vê o castelo no alto do monte e se lembra do início da viagem. Percorre as ruas irregulares e se embriaga com os cheiros de oriente e de sardinha salgada. No rosto das pessoas há seriedade e algo que lhe sugere medo. Há um clima de tensão. Você observa que há um fluxo de gente a adentrar as várias igrejas, e você entra também. “São Vicente”, você ouve um menino com um sino chamando as pessoas, e descobre que é Dia de Todos os Santos. Confuso, entra. Acotovela-se entre os fiéis e aspira o cheiro da gente suada, mal vestida, entretanto tão imbuída numa fé que lhe escapa a compreensão. Quando você está quase entrando no clima, um solavanco violento lhe joga no chão. Não demora a se lhe revelar a causa: um terremoto. Seu instinto é correr e assim o faz, observando as paredes, por todos os lados ruírem.

Quando você acha que é seu fim, levanta-se em uma cidadezinha pitoresca, bem longe do horror do cataclisma que presenciara antes. Está numa carruagem improvisada, puxada por burros parrudos que bufam para levar a carga por caminhos improvisados entre olivais e pinhais. Ao seu lado, um sujeito elegante ouve uma história de amor entre dois primos, ocorrida durante uma guerra. Você ouve fiapos da conversa, e quando está quase compreendendo quem matou quem para ficar com quem, “puff”: a imagem se esvai em fumaça e lá vai você, de novo, numa espiral descendente, aterrissar numa cidade de torreões altos, medievais. Por todos os lados andam jovens com roupas estranhas. “Será que estou em Hogwarts e vou topar com Harry Potter?”. Você pensa, mas já não é inocente: logo percebe que está em Coimbra e reconhece um sujeitinho esquisito, vivaz, que lhe pega pelo braço como se o conhecesse há muito tempo e o coloca numa carruagem (dessa vez bem fornida por cavalos de verdade) e dá ordem ao cocheiro para tocar rumo a Sintra.

Você está espantado. Ele pode ouvi-lo e vê-lo? Ele diz que sim e se apresenta: “Prazer, Eça de Queirós”, diz cordialmente. “Desculpe-me interpelar uma pessoa tão subitamente como o fiz, mas devo aproveitar a oportunidade de dar cá com um brasileiro”. Você não entende nada, e pouco mais tira do distinto jovem de bigode e “pince-nez”. A viagem passa rápido e logo vocês estão entrando no Castelo da Pena, em Sintra, de onde podem contemplar o céu como um infinito manto branco a cobrir o mundo.

Eça o chama a um canto e pede mil desculpas, mas deve ir resolver um mistério sobre uma morte ocorrida na estrada, mas que não se preocupe, pois um amigo o aguarda no pátio do castelo. Você, atônito e já achando que está ficando louco, entra e, por um instante, deixa-se maravilhar pelo azul vivo dos azulejos, pelo ambiente envolto por mistérios do oriente e do ocidente em um único lugar. Perdido, mal repara no sujeito magro, de rosto afilado, bigode e óculos. Seu terno é puído e seu chapéu é velho. Ele o contempla e você, ao contemplá-lo de volta, fica confuso, pois parece ora ver um homem mais elegante e sério, ora um sujeito tristonho, melancólico, ora um rosto vivaz de um camponês humilde, porém esperto. O sujeito o olha de volta, com expressão de profunda compreensão, e lhe acalma, dizendo que são alguns de seus outros “eus” que, às vezes, vêm à tona.

Com ele, você caminha ao longo da amurada do castelo e ele lhe fala sobre mil assuntos, numa profusão confusa de ideias. Do nada, porém, ele o empurra por uma brecha e, na queda, você desce por uma espécie de túnel mágico, em cujas paredes estão milhares, milhões de livros. Junto com você caem outras pessoas, mas que não parecem se dar conta que estão caindo. São homens e mulheres que se tomam nos braços, às vezes se estreitando num abraço, às vezes numa briga. Você demora a perceber que são as milhares de personagens das histórias guardadas naquelas páginas por onde você cai até abrir os olhos diante deste e estar aqui, de volta comigo.

Esta viagem que você fez na verdade foi uma longa jornada adentro de você mesmo, pois todas essas histórias e seres estão aí, fazem parte do que você é, de sua identidade. Você é sua língua e a memória que vem com ela, uma bagagem secular, milenar na verdade. Poderíamos ter pulado mais longe no tempo, pois aí dentro, neste peito que cresce entre o amor e o fogo, entre a vida e o fogo, estão todos os passos que nossa tão embotada língua portuguesa deu até chegar a você, quando, lá atrás, seus pais lhe ensinaram a falar “mama”, “papa”.

Alucinante, não? Alucinado eu, talvez você pense, mas peço que seja menos severo comigo e consigo mesmo. Nós temos em nós essa memória que, como uma beberagem xamâmica, pode nos levar longe, muito longe; muito mais longe do que qualquer “vibe” ou alucinação, induzida ou não. E está tudo aqui, bem dentro dessa droga que a nossa língua portuguesa.

Thiago Carbonell é professor de Redação, Linguagens e Literaratura do Criar Redação

 segunda-feira, 15 de junho de 2015