DA HAST DU DICH ABER ANSCHEIßEN LASSEN
Por Prof.Thiago Ianez Carbonel
(antes que você clique no "see more"/"ver mais", saiba que é longo – texto publicado no perfil pessoal do Facebook do professor em 09/07/2014)
Se Nelson Rodrigues ainda fosse vivo, e lúcido, o episódio de ontem teria lhe rendido crônicas amargas e ótimas oportunidades de tecer sua crítica ácida sobre variados temas. Nelson Rodrigues era um apaixonado pelo futebol e sabia, como ninguém (exceto Lula, talvez), fazer analogias entre o esporte e praticamente qualquer assunto. Eu, por outro lado, só gosto da Copa do Mundo e sei pouco sobre futebol – durante o mês que passou, soube o que é um impedimento, tiro de meta, escanteio; de ontem pra hoje, já comecei a esquecer – e confesso que a "febre" passou. Mas como "de tudo fica um pouco", resíduo drummondiano, dessa experiência restaram pontas soltas que, creio, rendem reflexões.
Não tendo me decidido por um caminho dedutivo ou indutivo, resolvo quebrar paradigmas e serei fragmentário em tributo ao resultado surreal (ou seria dadaísta?) do jogo de ontem. O que primeiro me ocorre é ponderar sobre como, nas últimas quatro semanas, uma campeonato mundial de futebol teve tamanho s pessimistas – alguns poucos, inteligentes; a maioria, oportunistas – e assumi uma posição racional e pragmática que tentarei explicar.
A escolha do Brasil como país-sede se deu numa infeliz coincidência com a eclosão de uma sequência de crises econômicas que começaram com a bolha imobiliária dos Estados Unidos. À época, creio que muitos dos poucos leitores se lembram, Lula, então presidente, disse que seria uma "marolinha" para o Brasil. A revista VEJA fez piada com a comparação e prognósticos apocalípticos; Folha de São Paulo, idem. Outros veículos midiáticos foram reticentes e os especialistas na área econômica se dividiram entre os que achavam melhor ser prudente e desacelerar a economia e os que achavam melhor acelerar ainda mais a economia por prudência – confesso que, quando estiver aposentado, vou fazer uma graduação à distância nessa área para entender o motivo de tantas divergências.
Como linguista, mas especificamente analista do discurso, minha opinião foi se formando pelo julgamento do que me parecia ser o bom senso. Após seis anos de governo Lula, e os meses que sobrevieram ao início da crise, ele estava certo: os efeitos sofridos pela economia brasileira foram pequenos perto do que aconteceu nos Estados Unidos e na Europa. Ora, por que não dar crédito a um modelo de crescimento econômico que até mesmo os mais respeitados analistas internacionais estavam elogiando? Por que não crer que estava dando certo, quando era visível (e ainda é, preciso ressaltar) que o Estado (comandado por um plano de governo) estava amparando a classe mais fragilizada e impulsionando, mesmo que timidamente, as demais?
A realização de uma Copa do Mundo é um negócio como qualquer outro, guardadas as devidas ressalvas. Há um planejamento a longo prazo, os gastos devem ser meticulosamente descritos nos orçamentos anuais, parcerias são estabelecidas, contratos são firmados, o setor privado obviamente entra na jogada, são feitos levantamentos do que precisa ser projetado em termos de mobilidade urbana, aeroportos, estrutura hoteleira, estádios. Não se trata de uma ciência exata, mas diante dos muitos olhares perscrutadores de hoje (mídia, Ministério Público, sociedade civil via redes sociais) é ingenuidade (ou estupidez, ou ambos) querer valer-se da "oportunidade" para o cometimento de aberrações administrativas que resultem em desvios faraônicos de verbas públicas. Corrupção, maracutáia, propinas, contratos licitatórios descumpridos, bem, infelizmente são fenômenos globais – vide Nixon (EUA), Sarcozy (França), Berlusconi (Itália) entre tantos outros. Assim como nestes países que parecem sérios (ressalto: parecem mais sérios que o nosso), há inúmeras investigações em curso, mas pouco se publica sobre o que não se alinha com a estratégia midiática em operação. E nesse momento não preciso nem dizer que a ordem é sabotar a reeleição de Dilma Rousseff.
Antes que o leitor comece a coçar as brotoejas de raiva, asseguro-lhes que este não é um texto de defesa política de quem quer que seja, ok? Sigamos adiante com o raciocínio. Nos sete anos entre a escolha do Brasil como sede do evento e agora, os investimentos focados no mesmo foram altos, na casa de dezenas de bilhões de reais. Uau, parece muito e é mesmo, mas não o suficiente para desencadear as críticas que por esses anos ocuparam as colunas de articulistas que, para mim, chegaram a se tornar cansativos. Ao contrário dos comentaristas econômicos de periódicos mais respeitados, como o "The economist" ou o "Financial times", os nossos especialistas alimentaram o alarmismo e as previsões de uma copa apocalíptica – em certo ponto, era possível crer que no dia 12 de junho haveria um apocalipse zumbi no Itaquerão e o cadáver do General Médici faria o discurso de abertura. Os dias que se seguiram mostraram o contrário e revelaram que, pelo menos no que se refere às análises acadêmicas, o olhar estrangeiro ainda é melhor que o nosso.
O mundo se entusiasmou com o Brasil e não foi apenas o envolvimento passional com o show do futebol. O Brasil pôde mostrar-se como nação que superou o patamar do "nação em desenvolvimento" e já está entre as "desenvolvidas com ainda muito a fazer". Os próprios brasileiros começaram, ainda engatinhando, a sair de suas posições defensivas em relação a si mesmos e ao país e parecem crer mais nas possibilidades de que o Brasil dê (mais) certo. As pesquisas do instituto DataFolha mostraram isso, os jornais e revistas chancelaram a tese ao se desculparem pelo tom alarmista de antes da copa (J.R. Guzzo, por exemplo), a mídia como um todo se rendeu ao fato que, pelo menos enquanto evento em âmbito global, "foi um bom negócio".
É claro que se reunirmos uma equipe de analistas e fizermos planilhas bonitinhas no Excel, vamos encontrar gastos que "poderiam ter sido utilizados na saúde e na educação" (uso as aspas para marcar o lugar-comum). De fato, mas vejo, no meu ímpeto ainda contaminado por certo otimismo, como um "investimento de prospecção de negócios", análogo ao que grandes empresas fazem para atrair investidores: oferecem e mostram o que há de melhor para conseguir fechar bons contratos. Pode parecer infame tal comparação quando se trata de grandes montantes de dinheiro oriundo dos cofres públicos; concordo, mas seria muita inocência ignorar que esse tipo de prática de dá aqui e em qualquer lugar. Ademais, tais gastos deixaram, entre algumas heranças malditas, contribuições positivas – se caiu um elevado em Belo Horizonte, os aeroportos melhoraram muito, há inúmeras obras de mobilidade urbana que resolveram questões antigas de transportes em grandes cidades, houve geração de emprego, aumento de arrecadação e por aí vai.
Minha colocação central neste texto – e demoro a chegar nela, dada minha tendência a ser prolixo – é que a realização da Copa do Mundo no Brasil foi um acerto estratégico do ponto de vista econômico e político. Sei bem que sobre os argumentos que ofereci até agora recairão refutações robustas e é o que eu espero mesmo – na minha área profissional, um princípio fundamental é o de que ninguém é dono da verdade e, complementando este, que a verdade é transitória, metafórica, mutante. Continuo achando que foi acertado o compromisso assumido pelo país e que os resultados foram melhores que o esperado. O que teria acontecido se não o aceitássemos, ou se tivéssemos "jogado a toalha" (como sugeriu Roberto Pompeu de Toledo, em artigo publicado na VEJA em 02 de maio de 2011), não temos como saber, mas podemos, com algum cuidado, projetar a partir do que aconteceu quando, em 1986, a Colômbia desistiu de sediar o Mundial e passou a "toalha" ao México. A Colômbia, por outras questões internas também, continuou um país de pouca expressão, enquanto o México, mesmo com o grande terremoto que abalou o país naquele ano, soube tirar proveito do evento.
E se o México pôde, por que o Brasil também não o fará? Reitero que até aqui a Copa nos trouxe benefícios concretos e imateriais (como a imagem positiva projetada para o mundo). Somo a eles a derrota de ontem. Como assim? A derrota foi um benefício? Caro leitor, depois de muito pensar a respeito concluí que sim, trouxe. Há 64 anos, quando do MARACANAÇO, um luto inconsolável caiu sobre o país, numa derrota de 2 a 1 para o Uruguai; ontem, o povo brasileiro carnavalizou a derrota e soube aplaudir a seleção alemã e soube entender (talvez não 100% racionalmente) que futebol pode ser uma paixão nacional, mas é apenas um esporte. O que sobreveio, do choro de David Luiz, passando pela entrevista de Felipão, chegando nos memes da derrota foi a sensação de que finalmente há uma consciência coletiva (sempre com exceções – vide o episódio lamentável na Vila Madalena, após da derrota) de que somos mais, muito mais que uma pátria de chuteiras. A derrota serviu, ainda, para que entendêssemos a irracionalidade de crer na representatividade de um indivíduo, como metonímia do grupo – do mesmo que Neymar não podia ser o time inteiro, é imbecilidade imaginar que Dilma é o governo petista (por isso que odiar a pessoa da presidenta não faz sentido: o governo é uma equipe formada por interesses multipartidários sobre os quais a pessoa dela tem pouca ou nenhuma influência).
Perdermos "de lavada" serviu, enfim, para que víssemos – como o veem alemães, ingleses, holandeses, franceses – que o jogo é apenas um entretenimento e que a tradição só conta se com ela vier a estrutura. O Brasil se vê, enfim, como o paradoxal "país do futebol" com seus melhores jogadores na Europa, e consegue entender que a unidade do time alemão decorre do fato de que aqueles jogadores trabalham juntos há muito tempo, treinam juntos, têm entrosamento; ao passo que os nossos, assim como os argentinos, só se veem alguns dias antes do início do campeonato e seria um golpe de sorte essa gambiarra vencer a tradição estruturada de times como o da Alemanha ou da Holanda. Mesmo assim, acredito que a paixão irracional desses dias valeu a pena. Valeu a pena, mas passou; foi uma onda catártica necessária para, como uma terapia de choque, fazer despertar em nós algo melhor.
P.S. Ontem, numa interlocução produtiva com Luiz Cláudio Jubilato, lembrei-me de "As bacantes", de Eurípedes, e de como o trágico grego soube tecer uma inteligente alegoria para mostrar o embate entre a razão e a tudo o que passional e ilógico. Na peça, Dionisio pune os tebanos por deixarem de crer e o rei se sacrifica para salvar a cidade. A releitura da trama em nossa realidade fica como exercício mental para o leitor.