Arte arde
Tal como vírus, desconhece o receptáculo, entra pela boca, morde a razão, dilacera o coração, desconstrói a razão, sufoca, incendeia-o ao penetrar nos seus ossos, nos seus poros, na sua carne, nas suas vísceras, nas suas veias até desconstruir o que a natureza reivindicou para si e a vítima da febre de senso amarrado concordou.
Tal como uma faca, abre buracos, machuca, desconstrói, humanamente desumaniza, assombra, mata, desfere, aponta, desponta na poeira impregnada nas roupas e nos sapatos do caminhante dos seus caminhos e descaminhos, sem destino, sem morte, fugidia, cruel, arranca a imaginação do deserto, rasga com garras a podridão da acomodação, vira do avesso o que ouve, o que lê, o que vê, o que só observa, sente os desvios indecifráveis, a sanidade não mais interessa, interessam as portas que se abrem e as que se fecham.
É atemporal, não se mede com trena, molduras não a encarceram, páginas não a encarceram, acordes não a encarceram, passos não a encarceram, não conhece medida, é livre, libertária, há, porém, o tempo da questão, o da incompreensão, tempo da revolução, da intolerância, o tempo sim e o do não.
É comensal, ataca os sentidos, as sensações, desafia as regras, as emoções, pólvora, amoral, imoral, brota selvagem, a raiz, ora na mão, ora na inspiração, não tem autor, tem trabalhador, metido a criador, o que primeiro sente a necessidade, a insatisfação, a paz, o medo, a dor, o sabor, o cheiro, o fedor, o tédio, o horror, o amargor, a felicidade, a identidade, a realização, a materialização do que é seu, colocou o ponto final. Ponto inicial. Pensa, grávido de satisfação: nasceu e cresceu dentro de mim.
É cidadã mundo, dá nó garganta, navega em direção ao horizonte sempre incontornável, lança-se no universo sem medida, sem a perspectiva do retorno. Quem se mete a feitor do artefato, é dono do nada. Nunca será o maquinista, nunca o motorista, nunca o ascensorista, será sempre o passageiro, porque não tem autor, tem mãos, olhos, invariavelmente, tem cor, sabor, cheiro, fedor, asco, buraco fundo, escuro, desnudo, tem nudez, pornografia, insensatez, sangra o peito, não tem medida, não tem dia, não tem noite, só instante.
Ser arrogante: “Esta é a verdadeira arte”.
Sem arrogância: “A arte nunca é verdadeira”.
O artista é tão-somente um prestidigitador.
A arte existe para que a realidade não nos enlouqueça.
E Eu não sei dançar.