O perigo da história única
(Luiz Cláudio Jubilato)
(Fiz o que pude, mas ficou longo – desculpem)
Que o Brasil não é para principiantes, Cabral descobriu ao atolar os pés nas areias de Porto Seguro e não achar ouro. Se não estivesse tão comprometido com a Coroa e a Igreja, teria rebatizado aquela enganosa beleza de Porto Inseguro. O venturoso rei D. Manuel precisava vender ilusões. Ricos falidos vieram dar com os costados nessas plagas. Padres vieram catequisar os “índios”. Catequisar significa impingir a “civilização”, ou seja, o modelo europeu incivilizado de vida. Pindorama virou a terra do faz de conta. A propaganda seria o negócio da alma, muito mais importante que a alma do negócio. O Papa bateu o martelo, legitimou a escravidão. Começou, então, o leilão. Pindorama se tornou uma grande fake News.
O bispo Pero Fernandes Sardinha, devidamente degustado, com cebolas e outros acepipes pelos índios caetés, foi o primeiro caso de deglutição, com pompa e circunstância, na Terra de Santa Cruz. Estudiosos de um país pouco afeito aos estudos descobriram que, muito mais que um ritual gastronômico, o banquete era um ritual religioso. Os caetés incorporavam, em homenagem ao degustado, o nome do guerreiro. Aos covardes, não comiam, relegavam-nos à inexistência em vida, às piores humilhações. Como incorporaram o corrupto bispo? A coroa matou as identidades adquiridas por eles a mosquetão. O Brasil definitivamente não é para iniciantes.
A história prova que os poderosos criaram maneiras mais sórdidas de degustação. Degustaram escravos à base de estupros e chibata, temperados com canela, cana e café. Machado de Assis, negro intelectualizado à custa do próprio esforço, foi engolfado pela crítica, que o embranqueceu, como se ele fosse uma espécie de erro histórico. Lima Barreto foi engolido pelos críticos Bruzundangas, porque, além de preto, bêbado, suburbano, não seguia os preceitos da gramática. Como preconizou, teve um triste fim, igual ao do nacionalista destrambelhado Policarpo Quaresma e amargurado como o Escrivão Isaías Caminha. Essa Nega Fulô, do branquelo Jorge de Lima, representa a literatura da negritude latina. O Brasil não é mesmo para principiantes.
Caetés domesticados, só a antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente. Mário de Andrade perscrutou essa alma em Macunaíma, herói de nossa gente que, ainda criança, fez coisas de sarapantar. O Brasil, de fato, não é para principiantes. A literatura da negritude saltou das brancas páginas para as mãos do branquelo homossexual, resolvido a escarafunchar o folclore de onde brotam a sensualidade e a sexualidade aos borbotões. Brancos, negros e índios, juntos e misturados, comendo-se, degustando-se. Os homens da moral e dos bons costumes se envergonhando.
Por culpa do vestibular, eu, um branquelo, fui obrigado a estuprar “Ponciá Vicêncio”, que fora estuprada por seu dono branquelo nas páginas da obra de Conceição Evaristo. Resumi a busca pela sua identidade em meia dúzia de linhas. Teria eu a oportunidade de me redimir, ao ser convidado pela Fundação Feira do Livro, para mediar o debate dela com a plateia. No dia do evento, Conceição teve uma isquemia. Tive medo que a memória fugisse. Conceição também teria de buscar sua identidade tateando como Ponciá?
Quem lê este arrazoado (herói anônimo), se perguntará: Aonde esse idiota quer chegar com essa confusão? Explico: O Brasil não é para principiantes. Falta reconhecer O perigo da história única, como apregoa a preta nigeriana Chimamanda Adichie, que caiu na armadilha de enxergar os mexicanos através dos olhos dos americanos, assim como a americana colega de quarto a via. Cria que a África era um país, e miserável. O professor branquelo crítico americano tentou degluti-la, ao afirmar que seu romance não era verdadeiramente africano, porque não falava nem da fome, nem da miséria africanas. Ela lhe virou as costas.
O Brasil, Porto Inseguro, nunca foi para principiantes. Como Macunaíma, faz coisas de sarapantar, uma delas é comprar “a história única”, inadvertido do perigo que advém da compra. Ou embranquece um negro ou o relega ao esquecimento, se não o estuprar ou chicotear antes. Eu, um branquelo, professor, estuprei uma negra sabendo o que fazia. A isquemia de Conceição me fez perceber algo seríssimo: Pedir desculpas não adianta, o mal está feito. Meu resumo existe como prova cabal. Cabral sabia o que estava fazendo, a Coroa e a Igreja também. Sabem porque o Brasil não é uma terra para principiantes? Porque ele próprio não encontrou sua identidade. O Brasil é uma espécie de Ponciá.