MACHADO ESTÁ MORTO
(Prof.: LUIZ CLÁUDIO JUBILATO – 11/5/24)
Estive pensando. E olha que pensar é um luxo nesses tempos tecnocratas e burocráticos. O motivo dos meus pensamentos é o possível assassinato de Machado de Assis. Mas, ele já não está morto? Perguntariam os menos afeitos ao estudo literário. Mas ele não está morto desde 1908? Diriam os donos do óbvio. Como é possível matar alguém que insiste em não morrer? Observando os estudiosos que esquartejaram sua obra, para melhorar extrair-lhe as vísceras, há a possibilidade de que partes de sua mente perspicaz esteja insepulta em inúmeros caixões. Abre-se um livro, uma delas emerge das tumbas vestida de smoking para se digladiar com um leitor de biquíni ou de bermuda ou de dry fith ou estivador de apostilas… São leitores desnutridos de vocabulário, conhecimento, experiência, imaginação ou coisa assim, dizem os entendidos.
Não é tão fácil para os “entendidos”, então, perceber que Machado de Assis, vulgo Bruxo do Cosme Velho, primeiro presidente da Academia de Letras, sepultado como imortal, na verdade, está morto para os internautas, “dadores” de aulas nos cursinhos, “fazedores” de resumos que insistem em mantê-lo sem brilho, sem vigor, sem “alegria”.
Aí, vem uma sacrílega escritorazinha, com ares de exorcista, para ressuscitá-lo, arrancando Machado de Assis das prateleiras das livrarias, das bibliotecas, das teses de mestrado, da arrogância da “inteligência” dos intelectuais, das famigeradas listas de livros dos vestibulares, das provas do ensino médio e fundamental para entregá-lo a um bombeiro, a um eletricista, a um aluno desnudo de vocabulário e/ou conhecimento… de uma escola pública, de um lugar qualquer.
Os exterminadores do Machado de smoking, em questão, é a escritora Patrícia Secco e uma equipe jornalistas. Pretendem simplificar o que chamam de “dialeto machadiano”, pois o Bruxo do Cosme Velho tornou-se hermético ao extremo para ser decifrado pelos leitores de Facebook e, quando muito, de livros, se é que podemos chamar assim, de autoajuda e de best seller. “Os livros dele [Machado de Assis] têm cinco ou seis palavras que [os jovens] não entendem por frase. As construções são muito longas. Eu simplifico isso”, afirma Patrícia, sem qualquer pudor. Heresia.
Os puristas afirmam que os tradutores de obras de muitos grandes e/ou pequenos autores, acabam desvirtuando-os, porque se tornam coautores ou até donos das obras ou até assassinos desses autores. Não creio que Patrícia tenha essa pretensão. O bom mesmo é ler o livro “no original”. Certo? O bom mesmo é ler Machado no original. Mas, quem lê livros, num país onde o cidadão “comum” sequer lê bula de remédio ou manual de instruções de seja lá o que for?
Machado divertia-se com o realismo “colorido” de Manuel Antônio de Almeida (Memória de um sargento de milícias), cuja linguagem remontava aos subúrbios cariocas, onde vivia o “homem comum”. O Velho Machado não tinha qualquer pudor em falar dessa admiração. Se o homem suburbano podia entender Manoel, porque não a ele? Depois, apoiou Lima Barreto que seguia a mesma trilha. Machado era desprovido do pudor que agora se reverte contra a sua obra. Vivia no século XXI.
É verdade que a literatura vai muito além do mero linguajar, contudo Shakespeare não deixou de ser Shakespeare, porque foi traduzido para o Cinema, nem Eça deixou de ser Eça, porque virou minissérie de tevê. A essência de suas obras continua lá, a não ser que Patrícia e seu “grupo terrorista” pretendam desmascarar de vez a suposta adúltera Capitu ou nos entregar, de bandeja, o sentimento ambíguo que Bentinho nutria pelo amigo Escobar, cujo corpo tão bem traduzia, em palavras, de tanto observar.
De tanto olhar para um único lugar, críticos tendem a cultivar verdades absolutas ou sofrer do mal da soberba. Lima Barreto, destruído pela pseudo-intelectualidade de sua época, devido a sua linguagem despojada, não pode ser entendido, hoje, sem um dicionário. Graciliano, o grande Graciliano, abusado no uso do falar do homem animal nordestino, só pode ser entendido e, mal entendido, quando um paciente leitor manipula, sem nenhum temor, um dicionário.
Machado de Assis escreveu uma obra “atemporal”, “universal”, mas, de que adianta toda essa genialidade, se não pode ser vestida, captada, entendida para ser amada. O Bruxo está literal e literariamente morto para as novas gerações, queiramos ou não, inclusive para os candidatos ao curso de letras nas universidades que preferem os resumos ao original.
Segundo o próprio Bruxo do Cosme Velho, para que o crítico julgue uma obra, “cumpre-lhe meditar profundamente sobre ela, procurar-lhe o sentido íntimo, aplicar-lhe as leis poéticas, ver enfim até que ponto a imaginação e a verdade conferenciaram para aquela produção. Assim espero que Patrícia Secco aja ao se propor a mexer e remexer na linguagem machadiana, sem mexer na essência de sua obra.
Uma versão “traduzida” de “O Alienista” será lançada em junho. As frases virão em uma ordem mais direta. Segundo Débora, “a ideia não é mudar o que ele disse, só tornar mais fácil”. 600 mil exemplares de “O Alienista” serão distribuídos gratuitamente pelo Instituto Brasil Leitor.
Louvo sempre qualquer iniciativa para fazer o livro chegar às mãos do leitor. No entanto, escrevo este texto, como todos os que se dignaram a criticar a iniciativa, no escuro. Sempre, nesses casos, prefiro esperar para ver. Se essa for uma maneira de ressuscitar as “Memórias Póstumas” do nosso maior autor, aplausos. O próprio Machado tomaria atitude semelhante, esperaria, pois alguns dos seus detratores disseram e ainda dizem o que ele nunca disse; que ele sofria influência de autores que ele sequer lera. Espero para ver a reação da crítica quando autores clássicos forem submetido ao “internetês”.