BISCOITO DE TERRA

(PROF.: LUIZ CLÁUDIO JUBILATO – 10/5/14)

A repórter cumpriu a pauta direitinho. Competente, dissertou sobre o belo trabalho dos soldados brasileiros na reconstrução de uma terra arrasada. Terra de sofrimento, desespero, mas cheia de dignidade. Destacou a miséria absurda, a fome absurda, as crianças desnutridas, os adultos desnutridos, o país desnutrido. Narrou a saga do trabalho incansável das freiras e dos voluntários. Das lágrimas, que desciam de rostos encovados, era possível distinguir as lavas do inferno interior. Entrevistou mães inconformadas; crianças desdentadas.

Teve coragem até de se meter em ruelas onde impera a violência de grupos armados. Armas vindas de onde? Dadas? Vendidas? Por quê? Por quem? Arriscou-se no mercado de produtos contrabandeados. Conversou com pessoas, viu, constatou, pesquisou. Perguntou, perguntou, perguntou…

Mais do que de um terremoto devastador, o Haiti foi devastado por sucessivas ditaduras sanguinárias, ladras que carregavam suas panças cheias empasinadas dos subornos das grandes potências que usavam o país como entreposto para espalhar produtos roubados e/ou capturar braços, mesmo surrados, para a escravidão.

Nesse momento, onde estão as grandes potências piratas? Estão escondidas debaixo da sua carapaça da dignidade? Simplesmente mandaram esmolas e países subdesenvolvidos para cuidar de uma nação estropiada, quando mal cuidam de si? O Haiti não serve para nada. De fato, nunca serviu. Sempre foi uma ferida purulenta às portas das grandes nações para onde um povo faminto poderia fugir.

O Câmera foi de uma competência ímpar. Closes em crianças nuas, criancinhas abaixo do peso, pessoas de todas as idades e sexos, a ponto de enlouquecer. Cresce, em nós, uma raiva canina da ONU,UNESCO, NAFTA, OEA… bandos de siglas criadas para nos fazer calar. Não sei nem porque falo de tudo isso. As imagens, os relatos, descrições e narrações falam melhor do que eu.

Na verdade, escrevi para falar não sobre onde o Haiti está, mas sim sobre onde ele não está. Nele as pessoas comem biscoito de terra para subornar a fome. Lógico, não há nutrientes, apenas barro assado infestado de todo tipo de bactérias e coliformes fecais. Podem, evidentemente, provocar a morte. Mortos, em pé, todos estão. A repórter não se dignou a participar do banquete, contudo logo pespegou a pergunta óbvia a um moleque sorridente: “Que gosto tem?”, ao que ele respondeu de imediato: ” Tem gosto de manteiga”. Provavelmente, não tem. É possível constatar, como é possível prever que aquela criança nunca tenha visto manteiga na vida. Nasceu na tragédia, morrerá antes de ela acabar.

Como a imaginação misturada com imaginação e manteiga faz uma criança saltar, navegar, correr e voar… Quem sabe, um dia, sentirá gosto de frango e, no outro, até de caviar? Diante da lente suja de morte e miséria, sorriu desdentado para um Brasil desdentado que ele provavelmente não sabe onde fica, nem saberá. Na terra devastada, tudo é provável. Tudo é possível. Até falar francês.

A repórter visivelmente incomodada penetra no mercado da cidade. O cinegrafista fecha a imagem em um jovem que se debruça sobre um monte de tecidos rústicos com paisagens pintadas por ele. Em todas elas, destaca-se o amarelo. O sol. Estão cheias de homens remando canoas, há coqueiros em praias paradisíacas defronte um mar azul. Ela pergunta: “É assim que você vê o Haiti?” Ele, calmante, num português afrancesado, responde: “Não. Esse é o Brasil”. “Esse aqui, amarelo de sol, é que é o Haiti”. “Mas, os quadros são muito parecidos. Cheios de cores vivas!”, por quê? Insiste a repórter? Ele lhe diz: “Aqui, as pessoas mijam, fazem cocô nas ruas, jogam papel sujo. É feio”. “Esse aqui, sim, com coqueiros, mar azul, sol é o meu Haiti”. Um Haiti que ele vê, mas nunca viu. Provavelmente, nunca verá.

A reportagem que eu fiz não foi exatamente assim, diria a repórter, talvez indignada: “Você pulou partes importantes”. Talvez ela tenha razão. Mas, ela viu do que é. Viu onde o Haiti está. Eu, o pintor anônimo, o garoto desdentado vimos o Haiti que não está lá. Cada cego vê com os olhos que tem.

 sábado, 10 de maio de 2014