O CONCEITO MORAL DE CLIC CLIC CLIC

(O BOCA DO INFERNO – 9/3/2014)

Enquanto rabisco bobagens nessa tela estúpida que me corrige quando me concentro em errar. Meu vocabulário intoxicante atesta minhas idiossincrasias. Escrevo para não me entenderem. Não tenho saco para essa história de ser fácil para ser compreendido. Se entenderem, o recurso final atende pelo nome de suicídio… Imbecilidade cultural.

Lá fora, um ser quase humano tornado voz, berra. E chora. Depois o choro miúdo farfalha. Não importa o cano de descarga dos ônibus, nem a descargas casas. Não importa o comedor de fogo que não ganha um centavo no sinal. Esse país nunca valorizou artistas. Muito menos os mambembes. A pena forjada não dá o tempo de baixar o vidro. Dá para ver a cara amarela empurrar a moeda de novo para o bolso ao primeiro sinal do vermelho virar verde, cor da tranquilidade.

Xinga baixo, quase muda, a moça da bengala. O mundo ouve o clic da máquina. Flash. A objetiva avança. Só ela. As pessoas, não. Estacam. Jornalista é. Vive de lapsos, de momentos. Manter a equidistância profissional da notícia. É fato. No ponto do ônibus, cada olho tem um norte. Nem um olha em frente. De frente.

Só mais uma subtração de valor pessoal, disse o policial no jargão policial. No ponto toda estaca é surda-muda. Nenhuma é testemunha. O medo fede. O medo é feromônio para bandido ou sobrevivente ou craqueiro demente. Canelas finas fogem. O cão sarnento corre. Único. Toma uma atitude. Arrebenta o medo com um latido. O ganido rasga o silêncio das motos sirenes apitos ônibus buzinas…

O repórter pega pelo braço a personagem do momento, desconhece sua bengala. Sensacional: a vítima cega roubada estava da posse de uma marmita. Arroz com feijão. Onde estaria ela agora? O comandante esbraveja na entrevista com pinta de macho alfa. Esbraveja a incapacidade da polícia. Quem é o bandido? A polícia que atira ou o bandido que tira? A câmera desliga. Depois da matéria, sensacional: O comandante enfia a viola no saco. A prefeita não foi encontrada. Seu assessor também não. Nem o assessor do assessor. O silêncio vira tapa na cara da população. A polícia é vítima. O mundo é redondo. A polícia sabe; cada um de nós, também.

Abro a porta da sacada. Estou, no 14º andar. Minha falta de visão está acima da cegueira da moça cega. Vejo o mundo de cima. Minha indignação dura até a hora do almoço. Franco com polenta e frango. Não vi a cara dela. Não como de marmita. Só vejo o pescoço. Só lembro do policial falando no jargão policial: “Ainda bem que subtraíram uma marmita, não subtraíram uma vida”. Será? Quem é mais bandido: o bandido que sente culpa ou a polícia que inventa desculpas?

Pretensiosos, escritores, poetas, intelectuais, idiotas de todas as estirpes veem o mundo de cima. Tecem suas teses antropofágicas. Antropológicas. Supostamente lógicas. Ajoelham-se diante das evidências. Ficam de quadro. O rabo abanando. Estacas. Nem sequer imitam um cão sarnento ganindo. Interferem de longe, acobertados pela distância entre escrever, ler e entender.

Esses, plantas carnívoras, parasitam a vida dos outros vampirizam o anomimato, vivem de sugar a pele e a reinventar os outros que acham que existem de fato, quando só existem no fato.

Enquanto rabisco nessa porra desse teclado que insiste em não me deixar errar. Acho que a ponta do meu dedo corre para o final da linha, como põe final a uma vida. Inventada. Não é um ponto de ônibus, nem um ponto crucial.

Lá fora o mundo é real. Gente come gente. Comem-se com seus olhos, suas bocas, suas palavras, sua burrice, suas ideologias, seus estratagemas, suas drogas. O mundo é redondo disse o meu avô. O cão, único a morder uma canela fina, de um bando ido, me diz no 14º andar: o mundo é uma droga. Ninguém toma partido. Todo mundo desaprendeu a gritar. Clic. Desaprendeu a pensar. Clic Clic clic clic

 quarta-feira, 09 de abril de 2014