Língua na Tevê
Por Prof. Luiz Cláudio Jubilato – diretor do Criar Língua Portuguesa e Redação
21/01/2014 – Nesse artigo, vou mexer em “vespeiros”, a eterna discussão entre:’a “Língua culta” x “Língua Popular”; gramáticos x linguistas. Quero expor alguns fatores para elucidar o caminho que pretendo trilhar. José de Alencar, por incorporar termos da língua portuguesa do Brasil e seus regionalismos às suas obras (Iracema, Til…), quando era comum imitar o idioma da metrópole, foi acusado por Franklin Távora e outros de escrever “errado”, além de “construir um sertanejo idealizado”. Hoje, é reverenciado como o primeiro romancista autenticamente nacionalista e o legítimo fundador do romance brasileiro. Saudado pela sua “coragem”, “seus erros” encontram-se enclausurados em dicionários e livros didáticos.
Manoel Antônio de Almeida (Memórias de um Sargento da Milícias), Lima Barreto (Triste Fim de Policarpo Quaresma) foram, em suas respectivas épocas, ridicularizados pela “pseudo intelectualidade tupiniquim”, porque, ao escreverem suas obras, abusaram do falar do “homem comum”, morador dos subúrbios cariocas. Hoje, considerados gênios da literatura, justamente por descortinarem o linguajar e os hábitos das classes baixas, é improvável ler esses subúrbios sem o socorro de um dicionário. todas as línguas são tão móveis dentro da espiral da História, como é móvel o homônimo órgão entre o assoalho e o céu da boca. O popular tornou-se culto.
Por outro caminho, chegaremos a um processo semelhante por outras vias. Guimarães Rosa, (Grande Sertão, veredas) ”cria estórias”, “constrói” e “desconstrói” palavras para extrair da mente, da pele, do suor, do coração, das crenças e descrenças dos rudes “coronéis” e “tropeiros” das Minas Gerais, o que há de mais humano e desumano no seu restrito mundo entre montanhas. Contudo, não é crível que o sertanejo seja capaz de utilizar o vocabulário e as construções frasais tão sofisticadas cultivadas pelo autor dentro do útero das suas estórias. Intelectuais até construíram um dicionário específico para “entenderem” um pouco melhor a sua obra. Erudito para os intelectuais e/ou popular para o povo.
Uma frase arreganha sua forma ver: “O sertão é o mundo”.Graciliano Ramos andou por outro sertão, igualmente rude e restrito, o mundo miserável da seca. No estilo do grande romancista, digladiavam-se o “erudito” e o “popular”. Em Vidas Secas, um narrador culto tenta destrinchar a alma do sertanejo, “quase um bicho”. Profunda contradição com Fabiano, o protagonista, que vivia na dúvida se era um homem ou um bicho. Um narrador igualmente culto mergulha na alma de um atormentado e rude Paulo Honório, protagonista de São Bernardo. Outra contradição, pois Paulo Honório, ex-caixeiro viajante, mal sabia falar. De maneiras diferentes, na obra desses e tantos outros gênios da literatura, o “culto” e o “popular” calçaram suas luvas para boxear.
No Humanismo, os nobres inventaram a tal “inspiração” (toque da mão de Deus) para diferenciar o poeta (poesia palaciana – musicalidade sem instrumentos musicais) do trovador (músico das cantigas fruto da cultura oral). O poeta (erudito) x o trovador (popular). A partir daí, os nobre estabelecem aí o preconceito do poeta contra o letrista, até que, pelo bem e/ou pelo mal, esse preconceito arrefeceu. Que me perdoem se digladiaram pela obra do “revolucionário” Villa Lobos contra o “ortodoxo” Camargo Guarnieri.
Quer dizer, então, que Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Cazuza, Renato Russo (com suas letras sofisticadas) podem habitar o mesmo mundo de “monstros sagrados”, como Drummond, Camões, Fernando Pessoa… Agora, funkeiros, rappers, sertanejos… não. O mundo deles arrasta o linguajar marginalizado das periferias, favelas e sertões. Uma língua vira latas, tal qual a da literatura de cordel….(Quem são: Patativa do Assaré? Azulão? Zé Coco do Riachão? Geraldinho? Mc Catra?…. para os “intelectuais” é impensável ombreá-los com Geraldo Vandré, Belchior, muito menos com Ferreira Gullar, Mário de Andrade, Décio Pignatari, Oswald de Andrade…
Quando falamos dessa eterna luta entre o “erudito” e o “popular”, do “correto” e do “incorreto” dentro da Língua Portuguesa, de que língua estamos falando? Aquela multifacetada? Com todas as cores, odores e sabores, de todas as classes sociais? Ou aquela engessada nas gramáticas, dicionários e livros didáticos? O Museu da Língua Portuguesa foi um espaço criado para congregar essas várias caras, esses vários sotaques, esses muitos dialetos e idioletos. Inaugurado, começou “viajando” pela obra de Guimarães Rosa e hoje “viaja” pela obra de Cazuza. Do “erudito”, romancista/contista ao “popular” poeta/letrista.
No Museu, em cada pedaço, está carimbada a nossa cultura: como escrevemos, como falamos, como somos. Mas, ainda falta, podem usar o veneno para atiçar o vespeiro, O Museu discutir os usos do “internetês”, essa nova forma de comunicação, pelos “blogueiros”, os “Twitteiros”, internautas, em geral. Outro mergulho deveria ser no mundo da imprensa: sua história,suas gafes, seus grandes personagens, mas também no mundo da tevê: suas séries, minisséries, telejornais e telenovelas. As diversas classes sociais estão representadas nelas. A tevê quase todo mundo vê.
A telenovela, querendo ou não, constituiu-se numa marca do Brasil. A adaptação de Escrava Isaura, de Bernardo Guimarães, autor do Romantismo, percorreu uma quantidade enormidade de países, expandindo nossa cultura, contudo, nunca, nenhuma novela escancarou tanto um debate sobre os muitos Português do Brasil, como “Amor à vida”. Walcyr Carrasco vai do gerundismo de Carlito, ao português macarrônico de Denizar. Caminha da importância dada ao falar “correto” pela contumaz leitora, D. Bernarda, ao “não tô nem aí” dito e redito por Valdirene e Márcia. Carlito, o Dj Delícia, sem estudo, faz confusão indiscriminada entre singular e plural, ao contrário do irmão, Bruno, que estudou Direito, por isso não comete esses “deslizes”. Bruno, estudado, teve oportunidade de trabalho nos mais altos estratos sociais, enquanto Carlito, sem estudo, passou boa parte da novela desempregado. Só se deu bem quando conseguiu espaço nos estratos mais baixos da sociedade que se expressam como ele.
Em uma cena simbólica da nossa visão social, Paulinha diz aos pais, Bruno e Paloma, que foi mal na prova de Português, mas não se importa, porque escolheu medicina e médico não precisa saber ler e escrever. Depois de os pais lhe passarem uma descompostura, afirmou, exaltada, que já lera até DOM QUIXOTE, de Miguel Cervantes. Nesta luta ferrenha entre o “erudito/culto” e o “popular/inculto”, não nos esqueçamos de que a tevê traduziu Guimarães Rosa, Manuel Antônio de Almeida, Machado de Assis, Érico Veríssimo e Jorge Amado, por exemplo, para o “populacho”, viraram minissérie; José de Alencar, Lima Barreto e Jorge Amando, por exemplo, viraram novela. Grandes autores, com seus estilos e sotaques, de forma simples e clara, traduzidos para o “inculto” povo brasileiro.
Dei essa volta toda, para ser “espinafrado” pelos puristas, com todos os possíveis “erros”, para discutir a importância de colocar em discussão, mesmo em uma novela, as diversas “línguas” desse Brasil de fronteiras invisíveis, mas existentes: o Português, de “Anos roubados”, não é o mesmo de ” O tempo e o vento”, muito menos o de “Serra Pelada”, mas é a nossa língua pátria.