Enem e o Ensino no Brasil
Por Thiago Carbonel. Professor do Criar Língua Portuguesa e Redação
O Enem é, de fato, o grande elefante branco dos nefelibatas da democratização do ensino. Imaginar um sistema de avaliação pautado em competências e não em conteúdo é lindo, mas fica apenas no projeto, "no papel", pois a prova já há muito tempo vem se fuvestizando e não consigo imaginar a remota possibilidade de alunos da rede pública que têm aula com professores eventuais (aqueles ainda não formados, ou, se formados, não concursados) competirem com os preparados em boas escolas particulares (e enfatizo o "boas", pois há muita picaretagem no ensino particular também).
Mas isso ainda é pouco se formos pensar que vivemos em um país com realidades distintas, com preocupações distintas – como elaborar uma prova que dialogue com os saberes de um aluno de São Paulo e, ao mesmo tempo, tenha a ver com a realidade de outro de Roraima? Quando nossos alunos fazem vestibulares pleiteando vagas em estados próximos, como Goiás, por exemplo, sentem uma certa "regionalização" da prova, exatamente porque é outra realidade, margeada por prioridades intrínsecas àquele estado. Mas tudo isso parece mero detalhe se pensarmos que o Enem é o maior "concurso" vertical (maior número de inscritos) do mundo! E toda essa mixórdia em um país de proporções geométricas, com problemas angulares e governado por bestas quadradas (não resisti a esse clichê).
As perguntas vão se acumulando: como garantir a impressão de mais de sete milhões de provas sem que nada vaze, sem que nenhum envolvido no processo, ainda que sem malícia, deixe escapar algo? Como distribuir tudo isso, sem que os mesmos problemas ocorram? Como garantir que, nos milhares de locais de aplicação, não ocorram favorecimentos? E depois vem, é lógico, a questão da correção: em um exame tradicional, como a Unesp, por exemplo, de 32 a 40 corretores são treinados e fazem a correções presencialmente, em regime de trabalho exclusivamente focado no trabalho, sob constante supervisão e debate dos critérios.
Já no Enem, são milhares de corretores, que trabalham em casa, treinados por diferentes supervisores Brasil afora. Não é preciso refletir muito para perceber que, dada a complexidade do sistema, em algum ponto "vai dar pau". Fico ponderando sobre essas questões e acho, cada vez mais, que o tiro saiu pela culatra e, é claro, os mais prejudicados foram aqueles do lado mais fraco. Quando eu comecei a lecionar, meus alunos que almejavam Medicina, por exemplo, dificilmente saíam de São Paulo; hoje, eles podem, pelo SISU, pleitear vagas em estados distantes fazendo uma única prova: ano passado, um deles resolveu ir pro Acre! (e relata que não é precário como imaginamos). Ora, ele seguramente ocupou o lugar de um aluno local, mas quando se formar creio que não ficará por lá e, assim, a região estará formando médicos que se concentrarão nas regiões mais desenvolvidas. Somando a isso outros detalhes que só alongariam esse comentário que já deve estar ficando chato de ler, é possível concluir que acima de todas os absurdos técnicos, o Enem tornou-se, talvez, um dos maiores instrumentos de Desdemocratização do ensino… como nunca antes na história desse país (não me contive de novo…).