No romance "Terra Sonâmbula", do moçambicano Mia Couto, Muidinga, resgatado por Tuahir, desperta sem memória, desconhecedor de traços do seu ser e do país em que se encontra, todavia, lê os cadernos de Kindzu e redescobre sua historicidade - suas origens, seus valores e sua cultura - a qual o permite lutar sob condições adversas. Nós, analogamente, adentramos ao século XXI com carência de memória, intensificada pela globalização e pelo excesso de informações a que nos recaem. Nesse sentido, o canto órfico de nosso passado radioso é esquecido e, assim, a individualidade e a sociedade são mutilados.
De fato, enjoamos da lira de Orfeu. Já não temos mais o apreço de Muidinga para desvendar a historicidade; tornamo-nos monstros que não se interessam mais em ouvi-la. Foi o "globaritarismo" - termo cunhado por Milton Santos - que nos fez perder a memória do som do deus grego: a profusão de informações, disseminada pelas grandes empresas e pela mídia, suplanta, muitas vezes, a cultura e a história locais dos indivíduos. Assim, as características destes são destruídas, visto que, tolhidos daquela, seu ímpeto, organização e argumentos são insuficientes para impedir algumas das ações de grandes empresas de dilacerar sua idiossincrasia, como acontece com povos indígenas e com a população ribeirinha, sobre cuja historicidade a demarcação de terras e a construção e usinas imperam. Fomos obrigados a ouvir uma lira diferente de Orfeu.
Por conseguinte, aderimos ao canto das sereias. A sociedade é guiada por ele e é impelida a perder a memória, a colidir contra rochedos e a se auto-destruir, por meio de um processo ideológico que faz com que muitos de nós encaremos os fenômenos de sua práxis social como naturais, por mais que não façam sentido à luz da historicidade da sociedade. Desse modo, se Marielle Franco engaja-se politicamente e estudava as peculiaridades sociológicas os grupos humanos oprimidos com o fito de resguardar-lhes dignamente os direitos humanos, uma sociedade patológica sentiu necessidade de liquidá-la. Essa sociedade, afinal, não possui memória do processo gênese das minorias brasileiras e acha, pois, que sempre existiram, naturais, imutáveis, em seu cerne. Parece que a coletividade nunca ao menos folheou os cadernos de Kindzu.
Muidinga tinha memória, sua imaginação não era restrita ao ônibus velho onde vivia; nós, por outro lado, trancafiamo-nos em um estreito e preconceituoso machimbombo social. Dentro dele, somos levados, pelas forças globalitaristas, a abdicar de nosso valoroso passado órfico, constituinte crucial de nossa historicidade e de nossa individualidade. Conseguintemente, a sociedade, cujos preconceitos são naturalizados pelo canto das figuras mitológicas femininas, também definha.