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Ana Letícia F. Darcie
Criar São Carlos

Os bichos de Bandeira

Eles cheiram e rompem o plástico das escolas de lixo, espalhando sua imundíce pela cidade. Eles insistem em se reproduzir, feito pragas, pelas ruas, causando medo e insegurança. Eles portam trapos e devoram restos, garantindo sua sobrevivência. Eles deslocam-se, nômades, à procura de um abrigo. Eles passam fome, frio e sede e não sabem quantos dias amargos ainda lhes restam. Eles são sórdidos e espiam-nos com olhos lânguidos. E nós, num ímpeto de pura solidariedade e compaixão, damos algumas moedas a estes pobres homens.

A piedade cristã que se apodera de nós, esporadicamente, é um dos resquícios de vida animal que o homem ainda não conseguiu apagar de sua linguagem evolutiva. Assim como as aves buscam comida a seus filhotes e formigas sacrificam sua faina pelo bem da comunidade, também o homem não consegue, por mais que esteja desenvolvendo mecanismos "evolutivos" para fazê-lo, permanecer indiferente aos sofrimentos de seus semelhantes. Para garantir a sobrevivência de uma sociedade, seja ela natural ou civilizada, é preciso que meus membros preocupem-se uns com os outros, aumentando exponencialmente as chanas de manutenção da espécie. Biologicamente, é por isso que, quando tentamos ignorar a miséria alheia, não logramos fazê-lo com êxito.

Se a condição necessária para que a solidariedade se manifeste é a existência de situações penosas, deduz-se porque o Brasil é considerado o país mais solidário do mundo. Com persistentes elevadas taxas de analfabetismo e de concentração de renda e com parcela considerável de sua população vivendo abaixo da linha da pobreza, é natural que nós, brasileiros, carregando o lastro moral cristão, não consigamos ignorar a dor alheia. Uma vez que o Estado, pressionado pelas elites, continua sofrendo o mal do berço esplêndido, que considera o país um paraíso, sentimos a obrigação (cidadã, moral ou religiosa) de aliviar, ainda que por instantes, a misericórdia dos bichos humanos.

Esse alívio paliativo que lhes proporcionamos com moedas substitui, nos dias atuais, a cultura medieval da compra de indulgências. Estas seriam capazes de assegurar que até o mais pecador dos homens tivesse seu lugar no reino dos Céus, deixando-o livre para pecar à vontade em sua vida terrena. A falsa caridade, também chamada de esmola, tem uma função similar: o distinto indivíduo que doa, gentilmente, algumas moedinhas sente que seu papel social já está cumprido. E engana-se. O que fez esse indivíduo foi postergar a solução da miséria, pois não é preciso ser um grande economista para saber que uns "trocados" não alimentam, não educam e não oferecem empregos dignos.

Desobedecendo aos aforismos religiosos e humanitários, acredito que a solidariedade, tal como se conhece, não deveria existir com uma civilização. Afinal se o assistencialismo persiste, é porque também o fazem as desigualdades sociais que nos provocam um passageiro e biológico mal-estar. Se, no entanto, praticássemos solidariedade crassa adotando medidas eficazes e menos bizantinas às questões sociais, a falsa compaixão, revestida de hipocrisia, desaparecia. Infelizmente, é mais cômodo permitir que eles continuem se alimentando de restos. Os bichos, meu Deus, somos nós.